Um relatório técnico encomendado pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, para diagnosticar o nível de transparência nos pagamentos das emendas parlamentares – verbas que deputados e senadores podem indicar no Orçamento da União, e que se tornaram o foco da mais recente tensão entre os Poderes – mostra que, na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Executivo implementou medidas que elevaram o detalhamento desses repasses.
O principal problema de transparência apontado pelo STF, no entanto, e que levou Dino a suspender a liberação desses recursos – a não individualização dos parlamentares que indicaram as emendas do relator e de comissão, que representam o chamado “Orçamento secreto” – reside no Legislativo, que não publica esses dados, segundo o relatório.
O relatório do STF foi elaborado, por ordem de Dino, por uma comissão composta por técnicos da Corte, do Tribunal de Contas da União (TCU), e de vários órgãos do governo, como a Controladoria-Geral da União (CGU), Secretaria de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento (SOF), Secretaria de Relações Institucionais da Presidência (SRI), Tesouro Nacional, Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), bem como pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).
No início de agosto, ao suspender a liberação das “emendas pix” (transferências especiais, nas quais as verbas indicadas por parlamentares são repassadas a municípios sem finalidade pré-determinada), Dino reuniu os técnicos para entender por que nem todas as informações estavam disponíveis nos sistemas públicos de acompanhamento do Orçamento – principalmente sobre os parlamentares que indicam parte considerável das emendas. Por isso, mandou o grupo fazer um relatório técnico, divulgado nesta quarta-feira (21).
O documento servirá de base para que governo e Congresso deem mais transparência e rastreabilidade nos repasses. Nesta semana, autoridades dos dois poderes se reuniram com integrantes do STF para fazer um acordo para que as emendas voltem a ser liberadas, uma vez que são de pagamento obrigatório.
Nos próximos dias, serão definidas novas regras, incluindo critérios para a destinação do dinheiro, como impedimentos técnicos para pagamento de emendas individuais, e tipos de obras, programas e serviços passíveis de receberem recursos nas emendas indicadas por comissões da Câmara e do Senado, e as de bancadas estaduais.
Ao examinar o atual nível de transparência das emendas parlamentares, a comissão de técnicos apontou, no relatório, que existem basicamente três sistemas de acompanhamento: o Siga Brasil (www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil), mantido pelo Senado; o Portal da Transparência, da CGU (portaldatransparencia.gov.br); e o Transferegov.br, do Ministério da Gestão e da Inovação (https://portal.transferegov.sistema.gov.br/portal/home).
Os dois primeiros, segundo o documento, contêm basicamente as mesmas informações da execução orçamentária e financeira, mudando só a forma de apresentação dos dados. Já o Transferegov.br serve não apenas para acompanhar os pagamentos, mas também para operar as transferências, por parte dos atores envolvidos: os municípios e organizações que recebem os recursos, bem como os fornecedores que serão pagos para executar os serviços.
Sistema foi aprimorado na gestão Bolsonaro, mas relatório aponta problemas com 2 tipos de emendas
Num trecho do relatório, a comissão aponta como o Transfere.gov.br foi aprimorado durante a gestão Bolsonaro não só para dar mais transparência às emendas, mas para agregar dentro dele outros sistemas que possibilitaram seu uso para concretizar as transações.
“Esclarecemos que o Transferegov.br opera desde 2008, originariamente como Sistema de Convênios – SICONV, começando a ampliar os tipos de parceria em 2019 com o nome de ‘Mais Brasil’ e desde 2022 teve o nome padronizado para o padrão Gov.br, passando a se chamar ‘Transferegov.br’”, diz o relatório.
Em seguida, o documento destaca um decreto editado por Bolsonaro em 2022, junto com os ex-ministros Paulo Guedes (Economia) e Anderson Torres (Ministério da Justiça), que instituiu o Sistema de Gestão de Parcerias da União (Sigpar).
“Percebe-se que o Transferegov.br hoje atua como o sistema estruturante das parcerias, nos moldes do Decreto nº 11.271/22, com total rastreabilidade e transparência das operações realizadas nas emendas de relatoria e de comissão que são executadas de forma descentralizada pelos tipos de transferências já internalizadas no sistema, de forma integrada com todos os sistemas que participam desse processo”, diz o relatório, fazendo uma referência direta aos tipos mais problemáticos de emenda parlamentar – as de relator e as de comissão.
Essas emendas viraram alvo do STF por serem assinadas apenas pelo deputado ou senador que fecha o texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) ou pelo presidente de alguma comissão temática da Câmara ou do Senado. Apesar de oficialmente vinculadas a um único parlamentar, os recursos dessas emendas são repartidos entre deputados e senadores em negociações de bastidores, de modo que os mais poderosos e influentes conseguem montantes maiores, que são direcionados para seus redutos eleitorais.
O governo acaba alijado nesse processo, pois é obrigado a pagar, não dosa o fluxo, não interfere no destino e, assim, perde capacidade de negociar apoio no Congresso.
O relatório destaca que, apesar de ter maior transparência, o Transferegov.br não operacionaliza transferências “fundo a fundo”, comuns nas áreas de saúde, educação e assistência social, muito usadas por parlamentares para direcionar verbas para suas bases. Trata-se de recursos que saem de um fundo federal para um fundo municipal.
Em outros trechos, o documento mostra que, apesar da tentativa do STF, no final de 2022, de obrigar o Congresso a revelar os nomes dos parlamentares patrocinadores das emendas de relator e de comissão, ainda não é possível relacioná-los aos repasses. O relatório narra que as indicações eram feitas por meio de ofícios enviados diretamente por senadores e deputados aos ministérios do Executivo. Algumas pastas divulgaram esses pedidos e em 2021 foi criado um sistema para centralizar essas demandas, mas ainda assim não é possível “verificar se a solicitação foi atendida e, tão pouco o status de uma eventual execução”.
Em 2022, ao julgar uma ação do PSOL sobre as emendas de relator, o STF determinou a revelação dos parlamentares. O relatório narra que “os Ministérios publicaram em suas páginas na internet (ver Quadro 1) informações para dar atendimento ao item (ii.d)1 da Decisão proferida nos autos da ADPF 854, em 19/12/2022. Entretanto, tais indicações nos sites dos Ministérios não desvendam os parlamentares patrocinadores ou apoiadores das emendas (RP-9)”, diz o documento, referindo-se, portanto, a desdobramentos do caso já no governo Lula.
“Em relação às emendas de comissão (RP8), o Portal da Transparência apenas identifica o autor da emenda como a ‘Comissão Temática’ (por exemplo Comissão de Agricultura e Reforma Agrária), não sendo possível um maior detalhamento sobre as indicações que são feitas pelas comissões. Esse mesmo resultado é encontrado em outros portais discutidos acima”, diz.
Em outra parte, o relatório destaca que a responsabilidade pelas informações dos parlamentares patrocinadores é do Legislativo. “Vale esclarecer que a informação sobre parlamentar patrocinador ou solicitante responsável pela indicação de determinado beneficiário é de responsabilidade do Poder Legislativo. Os órgãos executores das emendas, recebendo as indicações dos presidentes das comissões, no caso de RP 9, e RAP de RP 8, têm o dever de segui-las, conforme estabelecido na LDO para os anos de 2022 e 2023.”
Na conclusão do relatório, sugere-se a integração maior dos sistemas de acompanhamento, com informações completas da origem, finalidade e destino das emendas.
Caberá ao STF julgar se, agora, Congresso e Executivo vão divulgar as informações mais completas, para então liberar novamente os pagamentos.