Os debates acerca da criação de um órgão de fiscalização e controle das finanças públicas em nosso país remontam à época imperial, de modo que desde 1826 já se visualizavam as primeiras formulações acerca da institucionalização de uma entidade voltada a esse fim. A formalização dessa ideia ocorre em 1890, com a edição do Decreto 966-A, de iniciativa do jurista, e então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, e que criava o Tribunal de Contas da União [1].
Spacca
Com a função de “tornar o orçamento uma instituição inviolável e soberana” e a missão de “prover às necessidades públicas mediante o menor sacrifício dos contribuintes”, o TCU surge com a preocupação da especialização e respectiva limitação de atribuições como forma de justamente reforçar sua competência de controle dos gastos públicos [2].
Passados mais de cem anos desde a sua criação, o debate sobre as competências do TCU ainda não se equalizou, tendo, pelo contrário, se intensificado de acordo com a profusão normativa, o surgimento de novos campos de atuação do Executivo, a complexidade do orçamento, as novas formas de participação do cidadão no exercício do controle e o desenvolvimento da sociedade como um todo [3].
Nesse sentido, podem ser citados os debates acerca da limitação de competências do TCU à luz de sua caracterização ou não enquanto órgão jurisdicional [4]; a possibilidade de que exercesse o controle de constitucionalidade [5]; a extensão de suas decisões com relação a atos e contratos administrativos [6]; e, mais recentemente, a sua atuação em esferas que não estão diretamente relacionadas à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos, entidades e recursos federais [7].
Novos campos de atuação
Dentre esses novos campos de atuação, passou a integrar a pauta de interesse do TCU, principalmente a partir da operação “lava jato”, a temática do combate à corrupção, momento no qual se institucionaliza toda uma rede de integração voltada à prevenção e repressão dessa prática. Assim, por mais que o órgão já atuasse na apuração de atos de corrupção ou práticas correlacionadas, a partir do advento da “lava jato” verifica-se um progressivo aumento do número de casos envolvendo o tema, seja em análises incidentais, seja no recebimento de representações e denúncias de legitimados, seja, ainda, na autuação de procedimentos por iniciativa própria.
Aqui, a preocupação que se coloca está entre o limite de uma apuração de atos genericamente caracterizados por “corrupção” daquelas matérias atinentes à defesa da concorrência, dado que esses temas podem ter uma relação bastante próxima, como é o caso da fraude à licitação operada mediante a atuação de um cartel.
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Sendo a defesa da concorrência um importante pilar do desenvolvimento econômico e social do país foi para ela criada toda uma estrutura, que inclusive conta com um órgão legitimado a, entre outras funções, apurar ilícitos contra o livre exercício da concorrência. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) é, por força da lei, a principal instituição responsável pela aplicação da legislação antitruste, de modo que embora o TCU certamente possa contribuir com diversas das temáticas relacionadas ao direito concorrencial, não guarda para si um dever precípuo com relação ao tema, principalmente se isso acaba lhe outorgando uma função de regulação da própria economia.
Longe de refletir uma preocupação meramente acadêmica, o tema tem consequências práticas e a própria operação “lava jato” é um reflexo disso. Afora as diversas medidas previstas na legislação antitruste, muitas das empresas que atuaram nos ilícitos apurados nessa operação foram declaradas inidôneas pelo TCU pela prática de “fraude à licitação”, cuja apuração estava sustentada na ação dos carteis que já eram observados pelo Cade.
Precisava?
De fato, o TCU possui essa competência sancionatória e pode exercê-la [8], mas a questão que fica é: precisava? Se há um órgão técnico, especializado e para o qual não se cogita um risco de captura, parece-nos que a resposta é negativa.
Ao se dedicar a atividades que se confundem com funções inerentes à defesa da concorrência, o TCU acaba se deparando com duas limitações relevantes. A primeira é que deixa de exercer o controle para o qual foi designado, mesmo que a situação não necessariamente lhe imponha o dever de subsidiariedade, pela própria existência de um sistema bem estruturado com essa atribuição.
A segunda é que desempenha atividade meramente sancionatória, comprovadamente ineficaz no cenário da defesa da concorrência, que não por outra razão é estruturado em diversas ações de cunho pedagógico, para além da mera aplicação de penalidade [9].
Adicionalmente, o TCU enfrenta desafios relacionados à sua própria estrutura e capacidade técnica. A análise de questões concorrenciais requer um grau elevado de especialização e compreensão dos mercados, características que nem sempre estão plenamente presentes no corpo técnico do tribunal. Embora o TCU tenha um quadro de servidores com inegável expertise técnica, há uma lacuna significativa quando comparada à especialização acumulada por órgãos como o Cade.
Por isso, parece-nos que a atuação do TCU na defesa da concorrência de forma isolada ultrapassa suas competências e não contribui com o próprio sistema, cenário bastante diverso do que se teria se a opção fosse por uma ação em interseção com o Cade, em que as atribuições dos órgãos fossem somadas e não contrapostas.
A existência de canais estruturados de cooperação e a melhor articulação institucional entre os órgãos poderia evitar tanto sobreposições como lacunas na fiscalização. Afinal, se o Cade se beneficia de diversos mecanismo de dissuasão de práticas ilícitas de mercado, o TCU tem incomparável capacidade de impactar ações de agentes públicos e privados, de modo que essa complementariedade poderia ser melhor explorada.
Desse modo, pelos próprios desafios que a defesa da concorrência no Brasil enfrenta, a atuação coordenada e eficaz de múltiplas instituições parece-nos bem-vinda, de forma que o TCU, enquanto guardião da probidade e eficiência dos gastos públicos, pode desempenhar um papel estratégico nesse cenário, que não perpassa necessariamente por assumir mais funções, mas justamente por limitá-las em prol da colaboração, criando instrumentos de atuação que sejam verdadeiramente transformadores.
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[1] Para um histórico do surgimento do TCU, recomenda-se: BARROS, Lucivaldo Vasconcelos. TCU: presença na história nacional. Brasília: TCU. Instituto Serzedello Corrêa, 1999.
[2] É o que se extrai da exposição de motivos da criação do ente: “Parece, porém, que essa evolução, a que se chegou, na fôrma italiana, levando a superintendência do Tribunal de Contas (corte dei Conti), além da fronteira dos atos concernentes às finanças públicas, força a natureza da instituição, sujeitando-a a críticas, de que não seria susceptível, si se lhe tivessem limitado às funções ao círculo dos atos propriamente financeiros do governo. Transpondo essa divisaria, o tribunal poderia converter-se em obstáculos à administração, dificultarão improficuamente a ação ministerial, e anulando a iniciativa do governo, em atos que não entendem com o desempenho do orçamento. Na Itália o critério do pessoal a que tem sido confiada essa magistratura, evitou, até hoje, em geral, esse inconveniente, abstendo-se o tribunal de exercer as suas pesquisas em assumptos alheios ás finanças do Estado. Mas não é de bom aviso insinuar no organismo de uma instituição um principio de conflito com outras, confiando o remédio do mal orgânico à prudência acidental dos indivíduos que a representarem. Melhor é encerrar a nova autoridade no limite natural das necessidades que a reclamam, isto é, reduzir a superintendência preventiva do Tribunal de Contas aos atos do governo, que possam ter relação com o ativo ou o passivo do Thesouro”. (BARBOSA, Rui. Exposição de Motivos de Rui Barbosa sobre a criação do TCU. Revista do Tribunal de Contas da União, v. 30, n. 82. Brasília, out/dez. 1999, p. 257-258).
[3] BARROSO, Luís Roberto. Tribunais de contas: algumas incompetências. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. N. 203: 131-140. Jan./Mar. 1996.
[4] Apenas para situar o debate, cite-se a discussão quanto à classificação do TCU enquanto órgão do Poder Legislativo ou com funções “quase-jurisdicionais”, embora a posição atual seja propensa a posicioná-lo como não vinculado a qualquer dos poderes instituídos, consistindo em órgão constitucional autônomo, de natureza suis generis.
[5] Para breve síntese do tema, vide artigo de opinião publicado no portal JOTA, Coluna “Controle Público”: TRISTÃO, Conrado. Controle de constitucionalidade por tribunais de contas?
[6] SUNDFELD, Carlos Ari e CÂMARA, Jacintho Arruda. Controle das contratações públicas pelos tribunais de contas. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 257. p. 111-144. Maio/Ago., 2011.
[7] São muitos os trabalhos produzidos sobre o tema, valendo, a título de referência, os artigos periodicamente produzidos pelo Observatório do TCU, grupo de estudos coordenador por essa instituição em parceria com a Sociedade Brasileira de Direito Público. A reunião dos artigos produzidos foi realizada no site: http://www.sbdp.org.br/category/artigos-e-balancos-criticos/. Acesso em 27/08/2024.
[8] Vide artigo 46 de sua Lei Orgânica.
[9] Não se está a defender que a aplicação de penalidades seja irrelevante, pelo contrário, trata-se de um meio eficaz de combate a ilícitos. Porém, como o próprio TCU constatou em diversas auditorias, a aplicação de penalidades era facilmente burlada pela criação de outras personalidades jurídicas ou outros artifícios. Defende-se que a aplicação de uma pena de caráter retributivo e pouco educativo não sana a raiz do problema e, ciente disso, a estrutura de defesa da concorrência é mais preparada a criar instrumentos de caráter pedagógico, tais como os Termos de Compromisso de Cessação da Conduta, a criação de diversos guias e orientações, e os Programas de Leniência.