Como a inteligência artificial ajuda nos estudos de Medicina e Direito?

Nem os currículos de cursos tradicionais do ensino superior, como Medicina ou Direito, estão passando ilesos pela inteligência artificial (IA). À medida que a tecnologia avança e muda a forma como a sociedade se relaciona e trabalha, isso se reflete na grade curricular, mesmo que ainda de forma tímida.

Nos Estados Unidos, uma pesquisa com 2.693 reitores de universidades públicas e privadas apontou que 14% das instituições já fizeram alguma revisão do currículo levando em consideração o impacto da IA, enquanto 73% declararam estar planejando promover uma atualização.

A IA também ganha espaço em outro curso muito tradicional, o de Medicina Foto: ipopba/Adobe Stock

Os dados também mostram que somente 20% das instituições publicaram uma política que institucionaliza o uso da inteligência artificial. A pesquisa foi realizada em janeiro e fevereiro pela Inside Higher Ed, uma organização de notícias do ensino superior, em parceria com a Hanover Research, uma empresa de pesquisa.

Marina Feferbaum, coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, diz que a tecnologia deve ser transversal no currículo. “Não é porque o aluno não vai se aprofundar neste tema que não vai lidar, por exemplo, com crime cibernético em Direito Penal. O direto digital é interdisciplinar. Todo começo de semestre a gente coloca os professores para discutir as agendas e abordar a forma sobre como vão trazer o tema.”

Marina Feferbaum, coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP, diz que a tecnologia deve ser transversal no currículo Foto: FGV

Além disso, a FGV oferece disciplinas eletivas específicas por meio do Labtech, laboratório de tecnologia para o ensino jurídico. Uma delas é a de automação de documentos jurídicos, ministrada em parceria com uma startup. Os alunos aprendem uma linguagem de programação em python que os ajuda a lidar com a papelada, tão marcante na rotina da profissão, de forma digital.

Outro exercício do Labtech foi a criação de um chatbot para responder questões jurídicas. “Foi um grande desafio aprender essas lógicas, mas, no fim, o exercício mais difícil foi lidar com as soft skills (habilidades comportamentais)”, diz Marina. Na FGV, os estudantes a partir do 3.º ano de Direito podem participar de projetos multidisciplinares.

Treinando médicos

A IA também ganha espaço em outro curso muito tradicional, o de Medicina. Nas 15 instituições do Ecossistema Ânima que oferecem o curso de Medicina, os estudantes têm acesso a uma ferramenta que simula um paciente, dentro de um consultório virtual, permitindo a interação. O objetivo é reduzir erros por meio de um treinamento prático. O estudante pode conversar com o paciente por voz, fazendo perguntas e ouvindo as respostas.

Na sequência, há a análise do desempenho nesse atendimento. “Já que ele pode conversar livremente com o paciente, nós precisamos desenvolver ferramentas avaliativas que sejam capazes de registrar e interpretar as ações na simulação. É aí que entra a IA. Muito dessa análise é subjetivo e só é possível entregar valor se essa subjetividade for compreendida e o feedback for repassado com clareza para o aluno”, diz Vinicius Gusmão, diretor de TI da Inspirali, responsável pelos cursos de Medicina da Ânima.

A Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein utiliza manequins que são espécies de robôs semelhantes aos humanos, de forma que o aluno consiga praticar procedimentos reais de maneira segura. “Ele aprende urgência e emergência, mas também soft skills, como comunicação, trabalho em equipe e tomada de decisão”, diz Elda Pires, coordenadora acadêmica da graduação em Medicina.

O Einstein formou um núcleo com docentes de diferentes áreas de graduação para discutir a IA e desenvolveu um manual de orientações para professores e alunos, abordando o uso da tecnologia e os aspectos éticos envolvidos. Os detalhes são sigilosos. “A utilização de IA para os alunos estudarem ou resumirem conteúdos pode ser benéfica, desde que haja uma avaliação do material gerado. É essencial que os estudantes sejam capazes de discernir quais informações são úteis na tomada de decisão”, afirma Elda.

Letramento digital

No contexto educacional, um entrave importante para o bom aproveitamento de todo o potencial das ferramentas de IA é a falta de formação docente para o uso das tecnologias. Para Marina Feferbaum, da FGV, é fundamental que haja um apoio para que os professores não tenham de lidar com o fenômeno de forma isolada e sem informação.

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“Temos feito muitos treinamentos. Não tem como deixar nas costas dos professores a decisão de como usar o ChatGPT. Quais são as políticas de uso? O que é aceitável? Estamos pesquisando como as universidades estão fazendo essas políticas”, diz Marina.

Na Universidade Federal do ABC (UFABC) é justamente a ausência do letramento digital entre o corpo docente o impeditivo para o uso da inteligência artificial de forma mais disseminada na graduação, segundo Michelle Sato Frigo, coordenadora titular do bacharelado em Ciência e Tecnologia. O projeto pedagógico revisado no ano passado prevê o uso da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), porém, como não há uma regulação específica para IA, o uso acaba a critério de cada professor.

“Na Matemática, tenho o exemplo de uma professora que explica o cálculo e depois discute a resolução dele a partir do que o ChatGPT proporciona. Sabemos que a IA vai funcionar a partir da entrada de dados, e se você não fizer isso bem haverá distorções. Porque há mais de uma forma de chegar à resolução de determinado problema”, diz Michelle. “Por outro lado, tenho colegas que estão demonizando uso de IA e exigem que os alunos entreguem exercícios por escrito.”

Para a docente, a mescla geracional de quadro docente da universidade acaba gerando resistência para o uso da tecnologia, a contragosto dos alunos, que muitas vezes já têm acesso nos estágios que realizam no mercado de trabalho. “O uso da IA é uma realidade e estamos atrasados. Na Finlândia, por exemplo, o aluno monta a grade com 100% de laboratórios virtuais em salas de aprendizagem com seus avatares. Algumas empresas utilizam esse formato. Temos de preparar nossos alunos para isso.”

Entre as principais utilizações da inteligência artificial dentro das universidades apontadas pela pesquisa da Inside Higher Ed está o uso de aplicativos de assistentes de bate-papo virtuais e chatbots (45%). Outras 31% das instituições relataram a utilização para análises preditivas do desempenho do aluno.

Na sequência, apareceram:

  • pesquisa de análise de dados (28%);
  • cibersegurança (26%);
  • processos de admissão (25%);
  • sistema de gestão de aprendizagem (24%);
  • processos administrativos (19%);
  • arrecadação de fundos (14%);
  • orientação e apoio estudantil (13%).

Graduação em IA busca oferecer assistentes digitais cognitivos

“Quem não quer ter um assistente digital cognitivo?” A pergunta é de Wagner Sanchez, pró-reitor da FIAP, instituição que oferece a graduação em inteligência artificial. No Brasil todo, há 53 cursos superiores em IA. A criação e aperfeiçoamento de assistentes “cada vez mais inteligentes” é uma das missões dos egressos. “Essa é uma linha bastante promissora para o mercado porque vai atender médicos, advogados, arquitetos… Por que o médico não pode entregar os exames do paciente para uma segunda opinião ou, ainda, um advogado pedir auxílio para escrever uma petição?”

O pró-reitor conta que na FIAP o tecnólogo em IA reúne cerca de 60% de egressos do ensino médio, mais jovens, e outros 40% de desenvolvedores já formados “em busca de upgrade”. “Eu brinco com os alunos: você não vai ser substituído pela IA, mas sim por alguém que a conheça. Não trabalhe como um robô, senão você pode ser substituído por um deles.”

A cientista de dados Camilly Alves, de 21 anos, por exemplo, abandonou o curso de enfermagem e saiu do Recife para estudar IA em São Paulo. “No curso, a gente aprende a colocar a inteligência dentro do computador, a gente ensina a máquina a pensar.”

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