Criados com o objetivo primordial de garantir rendimentos dignos e um plano de assistência a trabalhadores de empresas estatais após a aposentadoria, os quatro maiores fundos de pensão do Brasil acumularam ao longo de décadas saldos bilionários. Em inúmeras ocasiões, as poderosas carteiras de investimento de Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobras), Funcef (Caixa Econômica Federal) e Postalis (Correios) foram usadas com mais ou menos pudor durante governos de diversos matizes para alavancar projetos variados, nem sempre com sucesso. Agora, a polêmica utilização das fundações voltou a ser tema de discussão após duas novidades mexerem com o setor.
Em 22 de agosto, o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reuniram as direções dos quatro grandes fundos para pedir a retomada dos investimentos em projetos de infraestrutura, em especial naqueles previstos no Programa de Aceleração do Crescimento. Na antevéspera, o governo havia finalmente dado o primeiro passo para tirar do sufoco o Postalis, ameaçado de insolvência por causa de um rombo de 15,2 bilhões de reais provocado, justamente, por um período de péssima gestão de investimentos que atravessou os três governos anteriores. O socorro veio da direção dos Correios, por meio da transferência de 7,6 bilhões de reais ao fundo em cumprimento à Lei 109, que obriga a empresa patrocinadora a arcar com metade do prejuízo.
Para os cotistas e beneficiários do Postalis, a notícia é boa, pero no mucho. Por um lado, o aporte dos Correios adia por ao menos uma década a falência iminente, que, nas condições atuais das contas, ameaçava assombrar os associados em 2026. Por outro, a segunda metade do rombo ainda não foi sanada e, segundo a mesma lei, caberá aos trabalhadores, aposentados e pensionistas. “Os outros 7,6 bilhões de reais já estão sendo pagos pelos participantes do Postalis. Sofremos com descontos nos contracheques que atingem 23,21% do benefício para toda a vida, com as reduções de 75% do décimo terceiro e de 50% da pensão por morte do beneficiário e com a extinção do pecúlio por morte”, diz Roberval Borges, presidente da Associação dos Profissionais dos Correios (Adcap).
A estatal vai transferir 7,6 bilhões de reais à fundação
O acordo entre Correios e Postalis faz parte do Plano de Equacionamento do Déficit em vigor desde dezembro do ano passado com o objetivo de equilibrar as finanças do Plano de Benefício Definido, que atende a dezenas de milhares de trabalhadores e sofreu a maior parte do prejuízo causado pela gestão fraudulenta dos recursos. O aporte feito pela empresa dá uma sobrevida ao Postalis até 2035. Dos 7,6 bilhões de reais, 2,3 bilhões serão quitados em 30 anos, em um montante equivalente às reduções de benefícios dos participantes do PBD. A outra parte, 5,3 bilhões, será paga pelos Correios de forma vitalícia em prestações mensais hoje estipuladas em 33 milhões de reais, valor equivalente à contribuição extra que os participantes lesados também terão de pagar para sempre. “A empresa assinou um contrato de confissão de dívida, um título executável. O Postalis pode pedir sua execução forçada, se não for cumprido”, explica Edgard Cordeiro, aposentado dos Correios e eleito pelos participantes para o Conselho Deliberativo.
A mesma imposição legal que traz o bem-vindo socorro dos Correios deixa um travo amargo para os trabalhadores, chamados a pagar de forma solidária. “O sentimento é de injustiça. Apesar de legal, o sacrifício aos aposentados e trabalhadores é profundamente injusto”, diz Borges. Esse sentimento, diz o presidente da Adcap, é generalizado. “Trata-se de uma poupança popular feita ao longo de décadas. A expectativa do poupador é ver seu esforço de vida concretizado. Cabia aos gestores dos Correios e do Postalis fazer investimentos seguros que garantissem a valorização dos recursos poupados. Mas, de modo pouco crível, mesmo no Brasil, onde as taxas de juros dos títulos públicos são excelentes negócios, os recursos poupados se desvalorizaram, impuseram seguidos déficits e exigiram enorme esforço econômico e social dos associados para manter o fundo vivo.”
Segundo o presidente do Postalis, Camilo Fernandes, o pagamento da parte da patrocinadora traz segurança aos participantes e assistidos quanto à solvência do plano. “Com o aporte dos Correios, o PBD começou 2024 sem déficit, em equilíbrio, mantendo sua liquidez. A solvência, a capacidade de cumprir as obrigações de longo prazo do plano, ganhou mais 10 anos.” Assim como o presidente dos Correios, Fabiano da Silva Santos, Fernandes atua para restabelecer a relação entre empresa, governo e fundo de pensão, praticamente aniquilada durante o governo Bolsonaro. “Nosso esforço é manter uma relação próxima entre o Postalis, os trabalhadores e os Correios para dar mais segurança e mostrar nosso compromisso com a governança. Estamos exercendo nosso dever de fidúcia com a proteção dos direitos dos participantes e assistidos do Postalis.” A atual gestão, acrescenta o executivo, busca o diálogo. “Temos feito lives e reuniões com entidades representativas dos participantes, ampliando os canais de comunicação e reabrindo postos de atendimento. Todas as decisões tomadas para proteger o patrimônio dos trabalhadores e garantir os contratos de longo prazo têm sido amplamente discutidas e apresentadas com transparência.”
Atrás do prejuízo. A direção dos Correios decidiu processar o banco norte-americano em busca de ressarcimento – Imagem: Ludmilla M. Moore e Marcos Oliveira/Agência Senado
Em nota divulgada após o anúncio do aporte ao Postalis, a direção dos Correios afirma que “a dívida foi causada pela má gestão de investimentos por parte do BNY Mellon” e que adota “medidas judiciais para recuperar os recursos perdidos pelo banco”. Apesar do déficit de 597 milhões de reais registrado em 2023, a empresa afirma não haver necessidade de recorrer ao socorro do Tesouro Nacional. “Os Correios não trazem e nunca trouxeram despesas para a União ou para o contribuinte brasileiro, pois possuem caixa saudável. Vale destacar que em 2023 a atual gestão do Postalis teve a melhor rentabilidade dos últimos anos, atingindo quase 200% das metas. Da mesma forma, a atual gestão dos Correios em 2023 reduziu em 22% o prejuízo herdado do governo anterior.”
O problema, diz Cordeiro, é a permanência das “duríssimas reduções nos benefícios” dos trabalhadores. “A primeira etapa, em novembro de 2023, veio com as alterações: na pensão por morte, reduzida para 50%, e no pecúlio por morte, que foi eliminado. A segunda etapa veio no holerite de fevereiro, com o aumento da contribuição extra para 23,21%, cobrada sobre o benefício mensal dos assistidos e pensionistas futuros. O pensionista que recebia benefício até aquela data foi um dos mais punidos, pois teve sua contribuição extra aumentada para 37,42%”. Outra severa medida de ajuste financeiro para os participantes do PBD, relata, é a cobrança de até 75% no décimo terceiro salário deste ano. “Caso a situação persista, será cobrada de forma vitalícia.”
O banco BNY Mellon, acusado de gestão fraudulenta, segue impune
O integrante do Conselho Deliberativo do Postalis avalia que as medidas só serão amenizadas se houver a recuperação dos valores aplicados de forma fraudulenta pelo BNY Mellon, banco norte-americano contratado em janeiro de 2011, primeiro mês do governo Dilma Rousseff, para ser o administrador e gestor dos recursos do fundo de pensão. Acusado de gestão temerária e criminosa, o banco foi responsável por prejuízos calculados em 10 bilhões de reais, dois terços do déficit total da fundação. “As diretorias de Correios e Postalis precisam atuar em conjunto nas medidas contra o BNY Mellon. E também pedir apoio a órgãos do governo como a AGU e a CGU, além dos ministérios das Comunicações, da Justiça e das Relações Exteriores, para jogar peso político e fazer com que o banco seja chamado a honrar sua dívida.”
Além da ação principal dos Correios, uma dúzia de outros processos contra o BNY Mellon estão em trâmite, mas até agora o banco teve apenas sentenças em primeira instância, ainda passíveis de recurso, ou multas que podem ser consideradas irrisórias em face do montante gerido de forma fraudulenta. À força-tarefa montada pelo Ministério Público Federal para tentar uma solução negociada, a direção do BNY Mellon aceitou pagar a título de ressarcimento apenas 400 milhões de reais. Até agora, o banco teve 250 milhões de reais bloqueados pela Justiça.
Dói no bolso. Borges, da Adcap, lamenta o fato de os pensionistas serem obrigados a cobrir metade do rombo – Imagem: Redes Sociais/ADCAP
Diretor do BNY Mellon no Brasil à época da gestão temerária do Postalis, José Carlos Xavier de Oliveira, mais conhecido como Zeca Oliveira, teve negado pelo Superior Tribunal de Justiça em agosto um pedido de desbloqueio de 98 milhões de reais em suas contas particulares. “A alegação de que não haveria nenhuma justificativa para a indisponibilização do patrimônio do impetrante não foi comprovada, havendo nos elementos informativos até então colhidos, ao contrário, indícios do seu envolvimento nos crimes financeiros sob apuração”, diz o despacho do ministro Antônio Saldanha. Em nota, a defesa de Oliveira afirma que “a decisão é ilegal, pois impõe sem fundamentação uma grave constrição patrimonial ao acusado”. Procurado, o BNY Mellon não respondeu aos pedidos de esclarecimento até o fechamento desta edição.
A desejada “força-tarefa” do governo para resolver a situação dos beneficiários do Postalis ainda não saiu do papel. Solicitada em outubro do ano passado pelo deputado federal Leonardo Monteiro, do PT, presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Correios e agora licenciado para concorrer à prefeitura de Governador Valadares (MG), a audiência pública sobre o tema que traria obrigatoriamente representantes do BNY Mellon à Câmara ainda não aconteceu. Um dos participantes da audiência seria o ministro da Controladoria Geral da União, Vinícius Marques de Carvalho, mas sua assessoria informa que nenhum pedido ou convite oficial foi até agora enviado à CGU.
A contribuição extra dos pensionistas cobrirá o resto do buraco
Responsável por conduzir o acordo entre Correios e Postalis, a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, subordinada ao Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, esclarece que o instrumento de confissão de dívida e o plano de equacionamento de dívidas são alinhados às diretrizes do Conselho Nacional de Previdência Complementar, órgão regulamentador do regime de previdência complementar fechado. “Este instrumento foi aprovado pelas instâncias de governança do Postalis e dos Correios, sendo encaminhado, posteriormente, para aprovação da Sest que, no uso de suas competências legais, manifestou-se favoravelmente por considerar que estava de acordo com as normas vigentes.” Sobre a demora na espera para a confissão de dívida, o ministério declarou: “Assim que a nova gestão teve acesso ao processo, fez questão de acelerar a manifestação e o parecer para dar sequência à celebração do termo de confissão de dívida entre Correios e Postalis”.
Por meio da assessoria, o presidente dos Correios afirmou que “a expectativa é que os recursos perdidos sejam recuperados”. Não existia, diz Santos, diálogo entre os trabalhadores e a direção dos Correios no governo anterior, que tirou mais de 40 cláusulas do acordo coletivo de trabalho da estatal. “A atual gestão reabriu as portas da empresa para as entidades de representação e no primeiro ano resgatou os benefícios que haviam sido tirados na administração Bolsonaro, em um acordo coletivo histórico fechado em mesa de negociação, o que não acontecia na estatal havia sete anos.”
Ex-presidente do Conselho Fiscal do Postalis, Fábio Conde avalia que o equacionamento da dívida foi fundamental para os beneficiários do plano, pois sem ele o PBD permaneceria insolvente. “Resolveu-se um problema que se arrastava há anos. O equacionamento, embora seja uma medida muito dura para todos, foi extremamente importante para a manutenção do PDB e, consequentemente, da aposentadoria de muitos beneficiários.” O questionamento que resta, diz, não é sobre o equacionamento em si, mas sobre as causas dos déficits que o compõem. “Há as perdas com investimentos fraudulentos, ou no mínimo temerários, causadas pelo BNY Mellon, e também o não pagamento da dívida dos Correios quando do saldo do plano, conhecida como Reserva Técnica de Serviço Anterior. Ou seja, os beneficiários arcam com o pagamento de uma dívida que não foi produzida por eles.” Apenas a dívida dos Correios com o Postalis relativa à RTSA, segundo estimativa da Adcap, passa de 2 bilhões de reais. “Seria mais um alívio em meio a tantas perdas.” •
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tempo para respirar’