Enquanto o Senado discute um projeto de lei que regulamenta o uso de inteligência artificial no Brasil, a bancada bolsonarista e a CNI, sigla da Confederação Nacional da Indústria, se mexem nos bastidores. Ambos fazem pressão contra a regulação e sobretudo o pagamento de direitos autorais por parte das big techs, que usam conteúdos de diversos autores na hora de treinar seus modelos de IA. No meio de tudo isso, artistas e outros profissionais já vêm sentindo no bolso os efeitos.
Uma reportagem da BBC News Brasil publicada na semana passada, por exemplo, conversou com ilustradores brasileiros que têm perdido trabalhos por causa da tecnologia —alguns relatam que viram seus ganhos diminuírem de R$ 7.000 por mês para cerca de R$ 300 mensais de três anos para cá.
Já uma pesquisa feita neste ano pela The Society of Authors, uma organização de trabalhadores do setor do Reino Unido, mostra que 26% dos ilustradores e 36% dos tradutores entrevistados já perderam trabalhos por causa da inteligência artificial, enquanto 37% dos ilustradores e 43% dos tradutores disseram que sua renda diminuiu por causa da IA.
No Brasil, prêmios literários como o Jabuti proibiram inscrições de obras feitas com inteligência artificial. Além disso, organizações e artistas têm se mobilizado para que a regulamentação saia do papel e os direitos autorais sejam pagos sempre que trabalhos de artistas forem usados pelas ferramentas —os envolvidos no debate vão da cantora Marisa Monte a associações como a AEILIJ, que representa escritores e ilustradores de literatura infantojuvenil.
“Entendo a reação da comunidade de ilustradores de querer barrar a IA, mas não acredito que essa seja uma posição sustentável a longo prazo”, afirma Vanessa Rosa. A artista visual lança na Bienal do Livro de São Paulo o infantojuvenil “A Carta de Verdelis”, livro em que todas as imagens foram feitas com ajuda de inteligência artificial.
“A inteligência artificial já é parte das nossas vidas, desde a pesquisa no Google até a câmera do celular. Softwares como o Photoshop já incorporaram ferramentas de IA, então é cada vez mais difícil diferenciar o que teve intervenção no processo criativo e o que não teve”, completa Rosa. “Como artista, vejo essa realidade como um convite à exploração dessas novas ferramentas.”
O processo visual da obra, porém, é um pouco diferente do que costumamos presumir quando o assunto é IA. Rosa primeiro cria esculturas reais das personagens, feitas de cerâmica. Depois, escaneia tridimensionalmente as peças e, em seguida, utiliza ferramentas de inteligência artificial para produzir as imagens.
O resultado é um universo de ficção científica com toques de realismo fantástico, no qual texturas lembram cerâmica, mas as formas são de flores, plantas e elementos da natureza num ambiente inspirado na astronomia.
A artista explica o processo do título, que sai pela editora Arte do Tempo. “Usei a plataforma Eden.art como meu ateliê digital, gerando milhares de imagens. Depois, o Photoshop para fazer combinações, pintando e editando”, ela diz. “É uma colaboração fascinante com diversos modelos de IA. Posso discutir conceitos arquitetônicos com o ChatGPT, visualizar essas ideias no Dall-E e transformá-las usando meus estilos Lora.”
A estética se conecta à própria narrativa, que fala sobre seres fantásticos que são enviados para Marte, onde começam a transformar a paisagem árida num local habitável e florido —num processo inverso ao que presenciamos na Terra neste momento, que vem se tornando inóspita por causa da ação humana.
Antes de virar livro, o universo desenvolvido por Rosa se tornou filme. O curta-metragem “Little Martians: Dear Human, My Muse” foi todo feito com inteligência artificial, mas com outras ferramentas, entre elas modelos para criar vozes e desenvolver animações.
Mas, ao mesmo tempo que mostra a potencialidade da inteligência artificial, o livro escancara as suas limitações atuais. O texto, que certamente teve ajuda de ferramentas de IA, apresenta os típicos exageros e rococós que máquinas costumam produzir. As rimas são óbvias, o estilo tem uma eloquência desajustada e há um bom-mocismo exagerado, sem nenhum espaço para ambiguidades.
Soa artificial, porque a inteligência é artificial. Esse tipo de ferramenta entende muito bem de zeros e uns —só que a literatura é formada justamente no espaço entre esses números. A escrita como arte e linguagem é incerta, fluida, problemática, obscura, imperfeita. Ela é meio, zero e um ao mesmo tempo, sem ser nada disso.
IAs têm capacidade de produzir imagens e textos commodity muito bons, até excelentes, mas ainda patinam no campo da linguagem e da criatividade, mesmo com a ajuda de humanos. Mas, sim, é claro que isso pode mudar, não sejamos ingênuos.
“A IA terá um impacto profundo no universo do livro. No futuro, a literatura não será apenas lida, mas vivida, criada em conjunto e compartilhada em tempo real. É um horizonte que promete transformar não só como contamos histórias, mas como as experimentamos e nos relacionamos com elas”, projeta Rosa.
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