Nos últimos anos, temos visto a multiplicação de ações judiciais questionando transações envolvendo imóveis rurais com fundamento na Lei nº 5.709/1971 (Lei de 71), que estabelece restrições para a aquisição e arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros. As referidas ações judiciais estão em linha com uma das maiores disputas societárias dos últimos tempos, envolvendo, de um lado, a empresa J&F e, de outro lado, a Paper Excellence, pelo controle da Eldorado Celulose.
Reprodução TST
A OAB, por meio de seu Conselho Federal, também entrou na briga como parte interessada na ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 342, ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira (SRB) perante o Supremo Tribunal Federal que discute especificamente a constitucionalidade do artigo 1º, parágrafo 1º da Lei de 71, estendendo as restrições da lei às sociedades brasileiras controladas por estrangeiros.
Vinculada à ADPF 342, temos ainda a Ação Cível Originária (ACO) 2.463, proposta pela União em conjunto com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), buscando anular o parecer da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo que dispensa tabeliães e oficiais de registro de aplicar as restrições constantes da Lei de 71. Vale destacar que o julgamento conjunto das ações teve início em 2021 e está suspenso por pedido de vista.
A maneira como esse tema tem sido tratado há décadas é sintomática de como o país lida com as diversas questões que nos afetam: fartura de polêmicas, escassez de objetividade e abuso de ideologias.
Ao contrário do que se propaga, a Lei de 71 não veda a aquisição ou o arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros, mas apenas estipula restrições para que as referidas transações possam ocorrer, já que o crescimento do país depende em grande parte de recursos externos.
No entanto, tais investimentos devem observar primordialmente os interesses nacionais e preceitos constitucionais. Com base nessa premissa, a Constituição, em seu artigo 190, determina expressamente a necessidade de regulação e controle dos investimentos estrangeiros em respeito à soberania territorial e econômica do país.
No mais, não se trata de uma “jabuticaba brasileira”. Ao contrário, diversos países, tais como, Estados Unidos (com regras que variam de Estado a Estado), Argentina, França e Austrália, adotam restrições aos negócios envolvendo a propriedade e a posse de imóveis rurais por estrangeiros, sem, contudo, afugentar o investimento externo.
Legislação inviável e desordem jurídica
Se a Lei de 71 foi editada justamente com o objetivo de controlar a ocupação territorial por estrangeiros, garantindo, ao mesmo tempo, um ambiente seguro para aqueles que aqui pretendam investir alinhados aos interesses nacionais, o fato é que, passados mais de 50 anos, a lei não atingiu os seus objetivos.
Spacca
A caótica situação fundiária brasileira, com origem no período colonial, está longe de nos permitir conhecer, com razoável segurança, a real ocupação do nosso território. Ademais, a Lei de 71 estabelece regras que demandam a prévia aprovação do poder público para a realização da quase totalidade de negócios fundiários envolvendo investimentos estrangeiros, diretos e indiretos, sem, contudo, apresentar um regramento claro que garanta o mínimo de transparência e previsibilidade ao processo.
Por tudo isso, na prática, tornou-se inviável o cumprimento da Lei de 1971 por aqueles que queiram investir no país.
Some-se a isso uma desordem jurídica provocada por diferentes interpretações legais emanadas do poder público federal e estamos diante da tempestade perfeita. Foi justamente o que aconteceu quando, em 1994, diante da crescente pujança do agronegócio e da pressão por investimento no Brasil, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer no sentido de que as restrições legais não se aplicavam às sociedades brasileiras controladas por estrangeiros, baseado na interpretação de que a Constituição não permitiria a discriminação de empresas em razão da origem do seu capital.
Na prática, o referido parecer afastou as restrições com base na origem do capital, exigindo apenas a constituição de uma sociedade brasileira como veículo de eventuais investimentos estrangeiros em imóveis rurais. Com base no parecer, destravou-se as operações envolvendo imóveis rurais nos anos que se seguiram.
Ocorre que, em 2010, a mesma AGU, em uma guinada interpretativa, alterou radicalmente o seu entendimento anterior, modificando-o para indicar que as sociedades brasileiras controladas por estrangeiros também estariam sujeitas às restrições da Lei de 71. Nesse contexto, como a Lei de 71 prevê a nulidade de toda transferência realizada em desacordo com seus ditames, todas as transações concluídas em aparente conformidade nos anos anteriores foram imediatamente colocadas em xeque.
Equilíbrio é possível
Os parâmetros estabelecidos na Lei de 71 são extremamente rígidos, de forma que a maioria absoluta das operações envolvendo investimentos estrangeiros, diretos ou indiretos, em imóveis rurais precisaria contar, dentre outras exigências, com a prévia aprovação do Incra ou, no pior dos cenários, do Congresso Nacional (a depender do tamanho do imóvel).
O resultado concreto desse excesso de restrições, combinado com a falta de estrutura para análise célere das transações pelos órgãos públicos, foi o imediato distanciamento do capital estrangeiro legítimo e estruturado, ao mesmo tempo em que permanecemos com as portas escancaradas ao capital especulativo.
Há que se admitir que é possível combinar controle com investimentos de forma ordenada e sem renunciar a um ou outro, já que ambos interessam ao país. No entanto, para que isso aconteça é preciso um novo marco legal que aprimore os mecanismos de controle, e, ao mesmo tempo, defina com clareza quais investimentos são permitidos e os procedimentos a serem adotados, propiciando um ambiente atrativo, sem burocracias e entraves desnecessários para obtenção das aprovações aplicáveis, com a celeridade inerente ao ambiente de negócios.
E não se trata de algo desconhecido na administração pública. Um exemplo concreto da possibilidade de unir controle com eficiência é a atuação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), cujo procedimento de análise e aprovação de transações não costuma afugentar nenhum investidor, dada a sua celeridade, transparência, técnica e previsibilidade.
O Cade é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com jurisdição sobre todo o território brasileiro, que tem como principal função fiscalizar fusões, aquisições de controle, incorporações e outros atos de concentração econômica que possam colocar em risco a livre concorrência.
Pela relevância de sua função, tornou-se obrigatória a submissão prévia das operações de fusões e aquisições de empresas e negócios correlatos que, porventura, possam afetar a competitividade de um determinado setor. A referida autarquia, além de seguir regras claras, apresenta prazos definidos para análise e julgamento dos casos, tendo competência para firmar acordos e compromissos de ajustes, fixar restrições, de forma a viabilizar com celeridade a realização das transações.
‘Cade das terras’
Em um país onde o agronegócio responde por aproximadamente 25% do Produto Interno Bruto e 50% das exportações, com operações cada vez mais sofisticadas, é imperdoável que as transações envolvendo ativos rurais não sejam priorizadas por meio de um órgão de controle e monitoramento eficiente, como é o caso do Cade.
Assim, a criação de um “Cade de terras rurais” (podendo invocar um Conselho Administrativo de Desenvolvimento Agrário) deverá não só imprimir a mesma eficiência em obstar transações que precisam ser evitadas, como também orientar e monitorar aquelas que tragam desenvolvimento socioeconômico ao país, com geração de empregos, receitas, recolhimento de impostos e crescimento da indústria do agronegócio como um todo.
Insistir para que o Incra ou mesmo o Congresso sejam os órgãos incumbidos de chancelar operações fundiárias é desconsiderar as atribuições de cada um deles e negligenciar o cuidado com um tema com tamanha relevância.
O Brasil urge por um controle efetivo de nosso território e por um ambiente seguro de negócios a alavancar o seu crescimento. Já passou da hora de a sociedade brasileira poder contar com maior racionalização no tema do investimento produtivo estrangeiro em imóveis rurais.