Opinião
No sistema eleitoral brasileiro, para ser candidato a qualquer cargo eletivo é mister preencher os requisitos de elegibilidade, além de não incidir em nenhuma causa de inelegibilidade. São exigências de natureza constitucional, estejam elas elencadas na Constituição, como as regras do § 3º do artigo 14, estejam previstas em legislação infraconstitucional, como na Lei Complementar nº 64/90, aqui chamada de Lei das Inelegibilidades.
Constitucionalmente, estabelece-se que existirão casos de inelegibilidade que tenham como objetivo, dentre outros, proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato (artigo 14, § 9º da Constituição).
A partir daí surge a Lei das Inelegibilidades, que, em seu artigo 1º, inciso I, alínea g, com redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010, estabelece:
“Art. 1º – São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;” (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)
Essa regra, dando efetividade à previsão de proteção da probidade administrativa e da moralidade no exercício de mandato eletivo, afasta do pleito os pretendentes que tenham suas contas rejeitadas pelas Cortes de Contas — tanto a da União quanto a dos estados — resultando no indeferimento do seu pedido de registro de candidatura.
Entretanto, é necessário que a condenação seja qualificada pela existência de ato ímprobo que tenha resultado em irregularidade insanável ao erário, além de a condenação ter transitado em julgado.
O presente artigo tem como objetivo debater a necessidade de comprovação da improbidade qualificada à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.
Questão do dolo
Marcelo Camargo/Agência Brasil
A ação de impugnação de registro de candidatura que tenha como fundamento a alínea g, I, do artigo 1º da Lei das Inelegibilidades impõe ao autor — geralmente o Ministério Público — o ônus de provar que a condenação de rejeição de contas se deu por ato doloso de improbidade e resultou em irregularidade insanável. Não é ônus do defendente comprovar o contrário, pena de subversão do sistema dos direitos políticos.
No caso, o STF, em julgamento sobre a nova Lei da Improbidade (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021), fixou o seguinte entendimento, em sede de repercussão geral, no Tema 1.199:
“1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei” [1].
Com isso, não se pode presumir o ato de improbidade administrativa, devendo haver prova inequívoca da vontade do agente em causar prejuízo ao erário ou se locupletar de verbas públicas. Falhas graves ou incompetência administrativa não são suficientes para caracterizar a improbidade.
E essa demonstração também é necessária em caso de ação de impugnação de registro de candidatura com esse fundamento. A menos que exista na condenação da Corte de Contas menção específica ao ato doloso do agente — com respeito à ampla defesa e ao contraditório —, a investigação a ser desenvolvida pela Justiça Eleitoral deve ser guiada com a presunção de que o ato não é, a princípio, ímprobo.
Entendimento do TSE
Não basta para caracterizar a improbidade administrativa a rejeição de contas, devendo ser demonstrado inequivocamente o ato de improbidade administrativa.
E esse entendimento é corroborado pela mais moderna jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, que assim consignou:
“ELEIÇÕES 2022. RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL. REQUERIMENTO DE REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO ESTADUAL. INDEFERIMENTO. INELEGIBILIDADE DO ART. 1º, I, G, DA LC 64/1990. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NÃO CONFIGURADO, NOS TERMOS DA LEI 14.230/2021. INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. DEFERIMENTO DO REGISTRO. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. A nova redação da Lei de Improbidade Administrativa passou a exigir o dolo específico para a configuração do ato de improbidade administrativa. 2. Inexistência, no caso, do elemento subjetivo indispensável à configuração da hipótese de inelegibilidade tipificada no art. 1º, I, g, da LC 64/1990. 3. Provimento do recurso ordinário eleitoral, para afastar a inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/1990 e deferir o registro de candidatura” [2].
Também é indispensável que a irregularidade seja insanável, ou seja, que o prejuízo causado ao erário não possa ser reparado que estejam presentes a má-fé, a desonestidade, a intenção de causar dano ao erário ou fraudar a lei, resultando em grave lesão ao patrimônio público. Não se trata de mera irregularidade verificada na prestação de contas que resulte na rejeição técnica. Mas sim um ato doloso com claro intuito de causar prejuízo ao erário, revestido de má-fé e desonestidade.
Veja-se como o TSE decidiu:
“ELEIÇÕES 2022. RECURSO ORDINÁRIO. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO FEDERAL. DEFERIMENTO. IMPUGNAÇÃO. REJEIÇÃO DE CONTAS ALUSIVAS A CONVÊNIO. INELEGIBILIDADE DO ART. 1º, I, G, DA LC Nº 64/1990. REQUISITOS NÃO ATENDIDOS. AUSÊNCIA DO DOLO. INABILIDADE DO GESTOR. MANUTENÇÃO DO DEFERIMENTO DO REGISTRO DA CANDIDATURA. DESPROVIMENTO DO RECURSO.1. O art. 1º, I, g, da LC nº 64/1990 exige, para a sua configuração, a presença dos seguintes requisitos: (i) exercício de cargos ou funções públicas; (ii) rejeição das contas pelo órgão competente; (iii) insanabilidade da irregularidade verificada; (iv) ato doloso de improbidade administrativa; (v) irrecorribilidade do pronunciamento de desaprovação das contas e (vi) inexistência de suspensão ou anulação judicial do aresto de rejeição das contas.2. A jurisprudência deste Tribunal Superior é no sentido de que não é qualquer irregularidade apontada na decisão de rejeição de contas do gestor que atrai a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC nº 64/1990, mas somente aquela que se enquadrar como vício insanável e ato doloso de improbidade administrativa, o que se afere a partir da presença de elementos que indiquem desonestidade, má-fé, desvio de recursos públicos, intenção em causar dano ao erário ou fraudar a lei e grave lesão ao patrimônio público. (AgR-REspEl nº 0600212-93/SP, rel. Min. Edson Fachin, PSESS de 7.12.2020).3. Das premissas assentadas no acórdão do Tribunal de Contas da União, embora tenha consignado a inexistência de requisitos para o reconhecimento da “que permitam reconhecer a boa-fé, em linhas maiores, ou outros excludentes de culpabilidade da conduta”, não se depreendem elementos suficientes que demonstrem a ocorrência de dolo, consistente na intenção do candidato de malferir o patrimônio público. Constata-se que as irregularidades identificadas decorreram de má administração e de falta de organização do gestor público.4. As referidas circunstâncias não autorizam a dedução da presença do elemento subjetivo exigido para a incidência da causa de inelegibilidade contida no art. 1º, I, g, da LC nº 64/1990.5. Negado provimento ao recurso ordinário” [3] (sem grifo no original).
Ônus probatório
Adiante, e estando devidamente demonstrado que o ato de improbidade que pode gerar a inelegibilidade prevista na alínea g, inciso I, do artigo 1º da lei de regência deve ser doloso e resultar em irregularidade insanável, e considerando que o dolo não pode ser presumido, importante considerar a quem compete o ônus probatório.
Spacca
No caso, não restam dúvidas que sobre o autor da ação, normalmente o Ministério Público, recai o ônus de demonstrar inequivocamente o dolo praticado pelo agente, além da insanabilidade do prejuízo causado ao erário. Trata-se de preservação ao princípio da presunção de inocência conjugado com a ideia de que a interpretação de regras restritivas a direitos fundamentais não podem ser interpretadas extensivamente.
Caso o acórdão que rejeitou as contas prestadas consigne que o ato é resultante de improbidade administrativa, deve o autor, já na inicial, trazer a íntegra do documento, justamente por se tratar de prova documental que deva ser colacionada à inicial. Tal situação não admite dilação probatória, a menos que fique demonstrada a impossibilidade de acesso ao documento quando da propositura da ação.
Por outro lado, não existindo no acórdão a menção ao ato de improbidade, deve o autor trazer argumentos na inicial que permitam chegar à conclusão de que o ato que originou a rejeição de contas preenche os requisitos legais. Os argumentos não podem ser genéricos, pena de trazer prejuízo irreparável ao defendente, que não poderá exercer integralmente seu direito constitucional de ampla defesa e contraditório.
Se a vestibular não trouxer todos os elementos que demonstrem a improbidade há evidente dano ao exercício do direito de defesa, já que o requerido não poderá contraditar as alegações que pesem contra si.
E esse requisito é indispensável, pois à Justiça Eleitoral cabe verificar a existência de ato de improbidade, a partir das provas trazidas aos autos, caso não conste do acórdão de rejeição de contas.
Em outras palavras, não cabe ao defendente trazer provas de que não agiu dolosamente ou que a irregularidade não é insanável, mas ao autor da impugnação comprovar, por meio de documentos acostados à inicial caso não seja necessária a instrução processual para tanto, que o ato que resultou na rejeição das contas é qualificado e apto a gerar a inelegibilidade pretendida.
Portanto, e como restringem direitos fundamentais, a interpretação às inelegibilidades deve se dar de maneira restritiva, não sendo permitida a interpretação extensiva das regras que impedem o cidadão de participar do processo político. No caso da alínea g, inciso I, do artigo 1º da lei das inelegibilidades, o ato doloso de improbidade deve estar suficientemente comprovado, recaindo sobre o autor da ação de impugnação de registro o ônus de comprovar que a rejeição das contas se deu em decorrência da prática de um ato ímprobo e que dele tenha resultado irregularidade insanável.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo em Recurso Extraordinário ARE 843989/PR, Relator(a): Min. Alexandre de Moraes, j. 18/08/2022, p. 12/12/2022, Tribunal Pleno
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral 060104626/PE, Relator(a) Min. Carlos Horbach, j. 10/11/2022, Publicado no(a) Publicado em Sessão 577, data 10/11/2022
BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral 060214020/MG, Relator(a) Min. Raul Araujo Filho, j. 18/10/2022, Publicado no(a) Publicado em Sessão 288, data 18/10/2022
[1] https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4652910&numeroProcesso=843989&classeProcesso=ARE&numeroTema=1199
ARE 843.989
Repercussão Geral – Mérito (Tema 1199)
Órgão julgador: Tribunal Pleno
Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES
Julgamento: 18/08/2022
Publicação: 12/12/2022
[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral 060104626/PE, Relator(a) Min. Carlos Horbach, Acórdão de 10/11/2022, Publicado no(a) Publicado em Sessão 577, data 10/11/2022. https://jurisprudencia.tse.jus.br/#/jurisprudencia/pesquisa?tribunais=TSE¶ms=s
[3] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral 060214020/MG, Relator(a) Min. Raul Araujo Filho, Acórdão de 18/10/2022, Publicado no(a) Publicado em Sessão 288, data 18/10/2022.