Quem vigia os vigilantes? Um debate sobre a Resolução 571/CNJ

Base Nacional de Dados do Poder Judiciário aponta avalanche de erros


Opinião

A conhecida frase Quis custodiet ipsos custodes?, ou “Quem vigia os vigilantes?” foi cunhada pelo poeta romano Juvenal, especificamente em sua Sátira VI, escrita no início do século 2 d.C. Nessa obra, Juvenal questiona a fidelidade das esposas e critica a sociedade romana, apontando a dificuldade de, mesmo com vigilância, se manter a ordem moral.

Rômulo Serpa/CNJ

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Com o tempo, a frase foi ressignificada para um contexto mais amplo, de modo a sintetizar o dilema do controle e da fiscalização do poder. Hoje, ela é usada frequentemente em debates sobre governança, ética e o papel das instituições que exercem algum tipo de autoridade. A questão central que a frase levanta é sobre quem deve supervisionar aqueles que estão incumbidos de supervisionar os outros, possibilitando, assim, uma reflexão sobre o poder e seus limites.

Essa reflexão torna-se cada vez mais necessária quando se verifica a amplitude das decisões, resoluções e provimentos do Conselho Nacional de Justiça. Todos sabem que o CNJ foi criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004 com o objetivo de exercer controle administrativo e disciplinar sobre o Poder Judiciário. Suas atribuições encontram-se listadas no artigo 103-B, § 4º, da Constituição:

“I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;
V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.”

Não se pretende, neste ensaio, criticar amplamente a atuação do CNJ junto ao Poder Judiciário. É fato incontroverso que o CNJ vem exercendo uma fiscalização muito importante sobre os tribunais brasileiros, e isso teve reflexos importante na administração da Justiça nos últimos 20 anos. O problema encontra-se no inciso I, acima transcrito, que vem sendo usado como fundamento para extrapolar, em muito, as funções do CNJ.

Extrapolações e Resolução nº 571

Nos últimos anos, foram muitos os provimentos e resoluções do CNJ que impactaram diretamente os cartórios de registro e os tabelionatos de notas. Entende-se que esse esforço em regulamentar diferentes aspectos desses serviços extrajudiciais visa desafogar o Poder Judiciário de demandas absolutamente desnecessárias.

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Muitas vezes isso se deu nas lacunas da legislação. Exemplos dessa atuação são a autorização do casamento civil homoafetivo — quando o que foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal foi a união estável entre pessoas do mesmo sexo — e a possibilidade de registro civil, independentemente de ação judicial prévia, da multiparentalidade — que somente foi reconhecida como possível no Brasil por meio da jurisprudência e da doutrina, mas não pela lei.

Tais casos, embora bastante polêmicos por se referir a uma atuação do CNJ em situações que demandariam um debate democrático e amplo no Poder Legislativo, foram acolhidos pela maior parte da comunidade jurídica como uma maneira de regulamentar situações não previstas nem proibidas por lei, e admitidas na jurisprudência.

Ocorre que esse limite foi ultrapassado pela Resolução nº 571, de 26 de agosto de 2024, que alterou a Resolução CNJ nº 35/2007, que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa.

Mais uma vez, não se questiona a competência do CNJ em regulamentar tais atos junto aos cartórios e tabelionatos. Porém, a Resolução nº 571 vai além, autorizando situações expressamente proibidas em lei, como é o caso do inventário envolvendo menor ou incapaz:

“Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.
§1º. Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz.
§2º. Havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura nos termos do caput, aguardar-se-á o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida.
§3º. A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante.
§4º. Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente.”

Não é só. A mesma Resolução nº 571 também autoriza o inventário extrajudicial mesmo quando o autor da herança tenha deixado testamento:

“Art. 12-B. É autorizado o inventário e a partilha consensuais promovidos extrajudicialmente por escritura pública, ainda que o autor da herança tenha deixando testamento, desde que obedecidos os seguintes requisitos:
I – os interessados estejam todos representados por advogado devidamente habilitado;
II – exista expressa autorização do juízo sucessório competente em ação de abertura e cumprimento de testamento válido e eficaz, em sentença transitada em julgado;
III – todos os interessados sejam capazes e concordes;
IV – no caso de haver interessados menores ou incapazes, sejam também observadas as exigências do art. 12-A desta Resolução;
V – nos casos de testamento invalidado, revogado, rompido ou caduco, a invalidade ou ineficácia tenha sido reconhecida por sentença judicial transitada em julgado na ação de abertura e cumprimento de testamento.”

Como se sabe, o Código de Processo Civil contém proibição expressa para que o inventário com herdeiro menor ou incapaz, ou com testamento, seja realizado extrajudicialmente:

“Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.
§1º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.”

Leniência preocupa

Essa proibição legal expressa foi, pelo que se notou, absolutamente ignorada pela doutrina. Ao contrário, o que se viu foram muitas manifestações efusivas sobre como o CNJ teria simplificado os procedimentos envolvendo inventário, retirando do crivo do Judiciário as situações de herdeiros menores e incapazes e de testamentos.

Evidentemente, não há como discordar que, havendo consenso entre os herdeiros e inexistindo prejuízo para os incapazes, a sociedade ganha em agilidade nos procedimentos de inventário. Isso permite ao Poder Judiciário focar seus esforços onde realmente é necessário: em situações de discordâncias entre os herdeiros.

Porém, é preocupante a leniência com que a comunidade jurídica vem tratando essas invasões cada vez mais explícitas do CNJ em questões que devem ser tratadas pelo Poder Legislativo. Ao que parece, a discussão sobre a desjudicialização, que deveria se dar entre representantes eleitos pela população, no âmbito do Congresso Nacional, passou a ser realizada entre os 15 membros indicados pelos tribunais, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil

Ao mesmo tempo, em razão de o CNJ reunir representantes da elite jurídica brasileira fora da academia, não se visualiza qualquer interesse – ou mesmo chances de êxito – de um questionamento judicial sobre a absoluta ilegalidade dos artigos 12-A e 12-B da Resolução nº 571. A ilegalidade, embora expressa, simplesmente não é debatida.

O CNJ foi criado para fiscalizar o Poder Judiciário, mas vem assumindo competências inerentes ao Poder Legislativo — sem que haja qualquer tipo de autorização constitucional ou legal para tanto.

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