Entenda como o uso justo se aplica ao treinamento de IA no caso Anthropic. Descubra o impacto da lei de direitos autorais dos EUA e precedentes como Google Books. Leia mais!
O Que é Uso Justo na Lei de Direitos Autorais dos EUA?
O uso justo (fair use) é um dos pilares da lei de direitos autorais dos Estados Unidos, funcionando como uma defesa crucial contra acusações de infração. Previsto na Seção 107 do Copyright Act, ele permite o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem a necessidade de permissão do detentor dos direitos, especialmente para fins como crítica, comentário, reportagem, ensino e pesquisa.
Para determinar se um uso específico se qualifica como justo, os tribunais analisam quatro fatores principais:
- O propósito e o caráter do uso, incluindo se é de natureza comercial ou para fins educacionais sem fins lucrativos.
- A natureza da obra protegida por direitos autorais.
- A quantidade e a substancialidade da porção utilizada em relação à obra como um todo.
- O efeito do uso sobre o mercado potencial ou o valor da obra protegida.
Antes de aplicar esses fatores, o tribunal precisa identificar objetivamente qual foi o “uso” dado à obra original. No caso contra a Anthropic, os autores alegam que houve pelo menos dois usos distintos: primeiro, a criação de uma vasta biblioteca digital com obras compradas e pirateadas; segundo, o uso de partes dessa biblioteca para treinar modelos de linguagem (LLMs). Essa distinção é fundamental, pois cada uso é avaliado separadamente sob a doutrina do uso justo.
Treinamento de IA e Uso Transformador: Caso Anthropic
A questão central no processo contra a Anthropic é se o treinamento de um modelo de linguagem (LLM) com obras protegidas constitui um uso justo. A decisão judicial considera o propósito e o caráter desse uso como “espetacularmente transformador”. O tribunal foca nos inputs (os dados de treinamento) e não nos outputs (o texto gerado para o usuário), já que os autores não alegaram que o serviço Claude produziu conteúdo que infringisse diretamente seus trabalhos.
O processo de treinamento, segundo a análise, utiliza as obras para mapear relações estatísticas entre fragmentos de texto, permitindo que o LLM gere textos novos e originais. Os autores argumentam que isso é análogo a uma pessoa aprendendo a escrever, mas o tribunal refuta, afirmando que “seria impensável” exigir pagamento cada vez que alguém se lembra de um livro ou se inspira nele para criar algo novo.
Mesmo que o LLM “memorize” partes das obras, o uso continua sendo transformador porque não reproduz os elementos criativos para o público. O objetivo não é replicar ou substituir os livros originais, mas sim criar algo completamente diferente. Como afirma a decisão, os LLMs da Anthropic foram treinados não para suplantar as obras, mas para “virar uma esquina e criar algo diferente”, o que favorece fortemente a classificação como uso justo.
Precedentes Relevantes: Google Books e Texaco
As decisões judiciais sobre uso justo frequentemente se baseiam em casos anteriores, e o processo da Anthropic não é exceção. Dois precedentes são particularmente instrutivos: os casos Google Books e American Geophysical Union v. Texaco Inc.
No caso Authors Guild v. Google, Inc., a digitalização de milhões de livros pelo Google foi considerada um uso justo. O tribunal entendeu que o propósito era transformador: criar uma ferramenta de busca que fornecia informações sobre os livros, e não substituir a leitura das obras. Essa função foi considerada um benefício público significativo, alterando fundamentalmente o propósito do material original.
Em contraste, no caso Texaco, a prática de cientistas da empresa de fotocopiar artigos de periódicos científicos para seus arquivos pessoais foi considerada infratora. O juiz Pierre Leval, uma autoridade em uso justo, determinou que as cópias serviam ao mesmo propósito do original — pesquisa científica — e, portanto, não eram transformadoras, prejudicando o mercado dos periódicos. Esses casos demonstram que a análise do uso justo depende intensamente do propósito da cópia: enquanto o Google criou uma nova função, a Texaco apenas arquivou o conteúdo para o mesmo uso, configurando uma substituição direta.
Impacto do Uso Justo no Mercado e na Criação de Conteúdo
O quarto fator da análise de uso justo — o efeito sobre o mercado potencial da obra original — é decisivo. A questão fundamental é se o novo uso substitui a necessidade do original, diminuindo seu valor ou desincentivando a criação de novas obras. No caso da Anthropic, o tribunal concluiu que o treinamento dos LLMs não prejudica o mercado dos livros dos autores.
A lógica é que o propósito do LLM Claude não é servir como uma alternativa à leitura dos livros usados em seu treinamento. Assim como o Google Books impôs limites para que sua ferramenta de busca não se tornasse uma plataforma de leitura, a Anthropic implementou salvaguardas para que o Claude não gerasse saídas que infringissem os direitos autorais. O uso é considerado “ortogonal”, ou seja, move-se em uma direção diferente da finalidade da obra original.
O tribunal ressalta que, se os outputs fossem infratores e competissem diretamente com os livros, a situação seria outra. No entanto, ao focar apenas no treinamento como um uso transformador, a conclusão é que ele “promove o progresso da ciência e das artes, sem diminuir o incentivo para criar”. Este equilíbrio é o objetivo central da legislação de direitos autorais e da doutrina do uso justo.

