O direito de se manter bem informado é um princípio essencial da democracia. A premissa, defendida por especialistas e profissionais da imprensa ouvidos pelo GLOBO, reforça o papel central do jornalismo na sociedade contemporânea, especialmente em um contexto de transformações tecnológicas e ameaças aos regimes democráticos.
— E apenas a imprensa profissional é capaz de cumprir essa missão com responsabilidade — afirma Martin Baron, ex-editor do Washington Post e hoje conselheiro da Carnegie Corporation of New York.
Referência global no tema, o jornalista americano lembra ainda que garantir o acesso à informação relevante, a partir de critérios éticos e objetivos, é fundamental para fortalecer as bases democráticas.
Outro ponto urgente, aponta o professor da USP Eugênio Bucci, é se debruçar sobre a importância da produção, do consumo e da monetização da notícia a partir de uma régua ética inegociável. Bucci destaca a necessidade de se pautar pela objetividade na identificação e na transmissão da informação relevante, mantendo clareza na oposição incessante às vozes antidemocráticas.
— O papel do jornalista do século XXI é, portanto, não só o de guardião, mas o de ator central da democracia — sintetiza Bucci, também ex-presidente da Radiobrás.
E a urgência destacada por Bucci se dá em meio a um novo capítulo da revolução digital iniciada há pouco mais de três décadas: a entrada da inteligência artificial, acrescenta Rosental Calmon Alves, fundador e diretor do Knight Center for Journalism in the Americas. Com seus enormes riscos e oportunidades, a IA se converte em debate obrigatório também no ambiente jornalístico, cuja argamassa segue sendo o fato, o real, o autêntico.
Para Calmon Alves, esse protagonismo singular é a razão pela qual regimes autoritários, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, veem o jornalismo como alvo prioritário. O professor da Universidade do Texas ilustra a constatação com os bastidores de uma das primeiras entrevistas de fôlego de Donald Trump já em sua encarnação política, em 2016, pouco após a Convenção Nacional do Partido Republicano, que o homologou candidato à Presidência dos EUA para enfrentar a ex-senadora Hillary Clinton, do Partido Democrata.
Com a câmera ainda desligada, a renomada repórter Lesley Stahl, da rede CBS, perguntou ao entrevistado o motivo de Trump ter escolhido a imprensa como uma das vilãs de sua campanha. Mais tarde, ela revelaria que o futuro presidente dos EUA foi direto: “Eu o faço com o objetivo de desacreditar vocês, de diminuir vocês no conceito dos americanos. Assim, quando surgirem as inevitáveis histórias negativas sobre mim, ninguém acreditará na imprensa”.
A aparente falta de sofisticação da argumentação do republicano revela, no entanto, a compreensão do entertainer de que o que estava em disputa no ambiente da comunicação era o que a população compreende como verdade. Trump optou por se aproveitar politicamente da cacofonia de vozes em busca de atenção nas múltiplas esferas do universo digital, notadamente as redes sociais. O fez como poucos e, como lembra Calmon Alves, foi devidamente imitado por populistas de direita mundo afora.
A observação é endossada por Eugênio Bucci. Ele destaca como a relevância do jornalismo profissional só cresceu no momento histórico atual, que desmente a percepção de regimes democráticos como garantia no mundo ocidental contemporâneo.
Nesse contexto, marcos simbólicos — como o centenário de grandes instituições jornalísticas, a exemplo do celebrado neste ano pelo GLOBO — oferecem oportunidade de reflexão tanto sobre os fundamentos que sustentam a liberdade de imprensa quanto o papel da informação na construção de uma sociedade livre.
O ecossistema midiático contemporâneo, destaca Calmon Alves, empoderou todas as pessoas, inclusive políticos, partidos e movimentos extremistas que antes dependiam da intermediação da imprensa para chegar aos cidadãos e eleitores:
— O paradoxo é que isso, no entanto, não nos faz menos necessários para a sociedade. Ao contrário. É verdade que O GLOBO chega aos 100 anos em cenário mais complicado do que nunca para o jornalismo profissional, posto que ele é exercido a partir de processos, métodos e princípios éticos limitadores de nossa atuação em relação a outras dessas vozes. E que não queremos que ele se transforme na mesma retórica de quem nos ataca, mas buscamos o tempo todo novas formas de nos comunicar com a audiência. E a melhor resposta ainda é, creio, fazer mais jornalismo de qualidade, como, aliás, prega Martin Baron. É o que ele repetia no primeiro governo Trump: “we are not at war, we are at work” (“não estamos em guerra, estamos fazendo nosso trabalho”, em tradução livre).
Trabalho que, afirma Bucci, permanece singular até mesmo no arcabouço necessário para o funcionamento e a manutenção da democracia. A rotina de informar criticamente a sociedade, com independência, só a imprensa profissional pode fazer. Nem o Ministério Público, nem a ciência, nem a academia, cumprem esse papel, frisa. Daí importância crucial do jornalismo para o exercício da democracia:
— Os últimos anos provam que preservar a democracia é um trabalho árduo, caro, e fadado ao fracasso sem a imprensa profissional — diz Bucci. — Não estamos a salvo de novas tentativas autoritárias. A sociedade deve entender que, sem jornalismo, não há nem referências para o exercício dos direitos dos cidadãos, nem a fundamental fiscalização do poder. E precisamos compreender que nós, jornalistas, somos também construtores dessa democracia. Que não pode jamais haver ponto de equilíbrio, para nós, entre ela e a ditadura. Não há equidistância entre o discurso defensor da democracia e o que a ataca. Nesse caso, o jornalismo tem um lado claro. E profissionais e veículos não podem brincar em serviço.
Bucci lembra que o centenário de um jornal com alcance nacional permite aos leitores algo cada vez mais raro em tempos de consumo imediatista de produção de histórias nas redes sociais: observar o que nos rodeia em perspectiva.
—Vivemos um tempo em que passado e futuro ficam confinados enquanto há uma concentração do tempo presente, algo próprio da era do espetáculo e do entretenimento. Diminuem-se radicalmente as oportunidades de ver as coisas em perspectiva. O jornal se tornou, hoje, um elemento insubstituível, mais necessário do que nunca, para essa visão de perspectiva. Você olha o passado do GLOBO e entende o Brasil, vê como ele se comportou em certas circunstâncias, e isso precisa necessariamente fazer parte dessas comemorações. Elas são, para o pensamento, uma função essencial. Daí, inclusive, a necessidade de se destacar a importância do trabalho que o jornal tem feito com seu próprio acervo — afirma o professor da USP.
As edições impressas do GLOBO desde 1925, pontua, documentam “o rascunho da História do Brasil, com a precisão da época:
— E isso tem enorme importância, ao oferecer um manancial de informação para se analisar aquele instante, agora com o olhar de hoje. Isso é a definição de perspectiva, de profundidade de campo na História. É um trabalho hercúleo fazer o que o jornal se propõe. Neste sentido, ele é um documento único de perspectiva histórica. Embora seja um entusiasta e consumidor dos avanços tecnológicos, torço para que o impresso siga, justamente por isso.
O GLOBO celebra os 100 anos no momento em que a inteligência artificial generativa já transforma o ecossistema midiático — e, como aponta Calmon Alves, “de uma forma ainda mais profunda do que a revolução digital dos últimos 30 anos”. Mas a inevitável entrada do não-humano no ambiente das ideias e das notícias, argumentaram os três pensadores ouvidos pelo GLOBO, também acena com a capacidade de oferecer oportunidades únicas a serem bem aproveitadas nas próximas décadas.
— Há um valor importante a ser reforçado neste centenário de um jornal que, desde o início, viu, ano a ano, máquinas substituírem o trabalho humano nas mais diversas funções e, ainda assim, sempre contou, como diferencial e razão de ser, com o artesanal, a assinatura, o autoral. Cada vez mais, no jornalismo também, o “Rolex” se diferenciará do “relógio produzido aos borbotões”, mesmo se for uma ótima imitação. Já é possível, por exemplo, pedir que a IA produza uma coluna com o estilo da Ruth de Aquino para o Segundo Caderno. O resultado pode até ficar parecido, mas não será a Ruth jamais — afirma Alves.
Eugênio Bucci, por sua vez, afirma que o caminho será tortuoso, ainda que fascinante, para que os jornalistas profissionais se mantenham relevantes no próximo século e adiante.
—Para a imprensa, a questão agora é que esse tipo de ferramenta traz embutido um concentrado de preconceitos e valores subjetivos que, nas outras revoluções tecnológicas por que ela passou, não existiam. Uma Redação que se valerá da IA também será de alguma maneira tomada pela inteligência artificial. Ao se buscar informações por meio dela, também se fornece informação para a a IA — diz.
Rosental Calmon Alves lembra ser preciso procurar entender a revolução tecnológica sem medo de adotar o que for necessário, mas mantendo os valores éticos que caracterizam o ofício e o papel da imprensa profissional na sociedade:
— Devemos compreender bem tudo o que vivemos nestes 30 anos de jornalismo digital para nos debruçar sobre esse novo ecossistema midiático em formação e tentar nos adaptar a ele. Há 25 anos, eu dizia que iríamos passar da era dos meios de massa para a da massa de meios. Que as pessoas seriam empoderadas com características comunicacionais que, antes, eram privilégio dos meios de comunicação profissional, e isso, de fato, aconteceu. Quando me apontavam como um ciberentusiasta, eu até concordava, mas respondia que não era, definitivamente, um ciberutópico. Sabia que poderia acontecer essa cacofonia que vivemos agora, após anos de redes sociais. Não sejamos tímidos nem hesitantes. Podemos examinar os erros cometidos na adaptação ao digital e nos preparar para o que vem aí, abraçando a IA de forma crítica, criativa, ética.
Bucci também vê na emergência da IA exemplo exato para se estabelecer um paralelo entre a defesa, pelo jornalismo profissional, da democracia e da regulação das big techs. O estado democrático, afinal, vive da regulação para a convivência entre as pessoas e as forças econômicas. E, ao contrário de outras inovações tecnológicas que perpassaram a imprensa desde sua fundação, a IA não é apenas mais uma ferramenta, como mostram pesquisas que investigam o preconceito e a parcialidade dos cérebros eletrônicos.
— Lidamos, agora, com uma força descomunal e fora do alcance de qualquer esforço regulatório. Defender a regulação das big techs é tão importante para o jornalismo quanto defender a democracia — afirma Bucci.
O especialista sublinha que os métodos da imprensa são transparentes, enquanto os das big techs, não:
— Uma vez mais, neste caso, temos lado. Não podemos, nos próximos cem anos, nos tornar simples acessórios de uma engrenagem maior e alheia ao processo democrático. Esse debate é obrigatório, tão difícil quanto fascinante. O bom é que ainda podemos pautar a discussão, e uma de nossas prioridades, daqui para a frente, será olhar criticamente para o tema, exatamente como fizemos, com sucesso, em relação às forças autoritárias que ameaçam a sociedade.
