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A inteligência artificial e o Direito: entre a promessa tecnológica e a essência da advocacia

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O avanço exponencial da inteligência artificial (IA) e de tecnologias correlatas, cuja presença nas esferas sociais já se anuncia incontornável, tem produzido, na esfera jurídica, um verdadeiro rearranjo de práticas, expectativas e metodologias. Promovem-se, com entusiasmo nem sempre temperado pela prudência, inovações que prometem otimizar a atividade dos operadores do Direito, desde a elaboração de peças processuais e revisão de contratos à previsão de êxito processual e análise preditiva de julgados. O cruzamento de milhares de decisões em segundos, a geração automatizada de petições e a organização de bancos de dados com alto grau de indexação já transformaram rotinas forenses e administrativas. Trata-se, sem dúvida, de um avanço capaz de ampliar o acesso à justiça e racionalizar recursos, se bem manejado.

Todavia, o Direito não é – e jamais foi – uma ciência exata. É campo normativo e axiológico por excelência. Seus fundamentos repousam na ponderação, na interpretação e na adequação do texto legal às singularidades do caso concreto. Há, pois, uma dimensão irredutível da experiência humana que a IA, por mais sofisticada que seja, não pode alcançar. A substituição do juízo prudencial por modelos estatísticos ameaça reduzir o Direito a uma mecânica algorítmica, destituída de sensibilidade, de contexto histórico e, em última instância, de justiça.

 

Logo, tal deslumbramento com o poder computacional não pode obscurecer as exigências éticas, filosóficas e técnicas que estruturam o próprio edifício do Direito enquanto ciência social aplicada, comprometida com valores, garantias e complexidades humanas. Mais do que nunca, é imperativo examinar criticamente a extensão e os limites dessa revolução digital, reafirmando a centralidade de um pensamento jurídico-humanista e a necessidade de que a tecnologia permaneça como instrumento, e não substituto, da razão prática do Direito.

Apesar do discurso tecnofílico predominante, a IA opera, ainda, por meio de inferências estatísticas e aprendizado supervisionado, dependendo de conjuntos de dados previamente alimentados por seres humanos – com todos os vieses, lacunas e contradições inerentes a essa origem. Assim, a inteligência artificial reproduz, e por vezes amplifica, distorções sistêmicas e injustiças preexistentes.

Ainda que revestidos de sofisticação técnica, os sistemas de IA estão longe de alcançar o rigor exigido pelas normas jurídicas. Multiplicam-se os relatos de equívocos absurdos cometidos por plataformas automatizadas: confusão entre institutos jurídicos elementares, produção de peças incompatíveis com a realidade processual e inclusive a criação fictícia de precedentes – fenômeno conhecido como hallucination, no jargão da ciência de dados.

Há registros de ferramentas que, ao redigirem pareceres ou petições, indicam acórdãos que jamais foram proferidos, fundamentações jurídicas que se contradizem ou argumentos logicamente falaciosos. Em tarefas simples, como o preenchimento correto de uma peça com base em dados fornecidos, há falhas que um estagiário minimamente treinado não cometeria. Eis o paradoxo: em nome da eficiência, delega-se ao autômato aquilo que exige atenção, inteligência crítica e senso de responsabilidade.

Em agosto de 2025, na Austrália, o advogado Rishi Nathwani apresentou, em plenário, alegações baseadas em jurisprudência inexistente, geradas por uma IA. O juiz James Elliot qualificou a conduta como temerária e advertiu que o uso de IA deve estar completamente verificado e validado antes de empregá-la em procedimentos judiciais. Neste caso, o próprio advogado expressou “vergonha” e apresentou desculpas públicas ao tribunal.

No Brasil, dentre tantos casos temerosos, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina advertiu um advogado que ajuizou habeas corpus com jurisprudência falsa. A desembargadora Cinthia Bittencourt Schaefer classificou o ato como “desrespeito ao tribunal” e evidenciou a necessidade de rigor ético mesmo na delegação de tarefas automatizadas. Em outro caso, no mesmo tribunal, a 6ª Câmara de Direito Civil aplicou multa de 10% sobre o valor da causa ao constatar que um recurso citava doutrina e jurisprudência inexistentes, geradas por IA.

Nos Estados Unidos, o caso Mata v. Avianca ganhou notoriedade quando advogados foram multados por apresentarem seis decisões fictícias, todas atribuídas erroneamente a cortes federais. O juiz Kevin Castel destacou que advogados têm o dever contínuo de verificar a autenticidade das citações e documentos apresentados, independentemente da tecnologia utilizada.

Esse cenário transnacional denuncia o perigo de uma confiança excessiva no aparato técnico e reforça a necessidade de supervisão humana constante. O advogado não pode ser reduzido à função de “pós-editor” de textos gerados por algoritmos, tampouco o juiz pode decidir à sombra de estatísticas que desconsideram a particularidade do caso concreto

A tentação tecnocrática que assola o campo jurídico espelha, em grande medida, a dominação da razão instrumental – conceito duramente criticado pela Escola de Frankfurt – sobre a razão prática aristotélico-kantiana. Substitui-se o juízo ético pela funcionalidade, o valor pela utilidade, a justiça pela previsibilidade.

No entanto, o Direito permanece, por excelência, um exercício de prudência (phronesis), sensível ao tempo, à cultura, à linguagem e às aspirações humanas. Nenhum algoritmo é capaz de captar, em sua inteireza, o sofrimento de uma vítima, o drama de uma injustiça histórica ou a complexidade moral de certos litígios. O discurso jurídico é, antes de tudo, um diálogo – e não há diálogo possível sem alteridade.

Como bem observou Miguel Reale, o Direito é “fato, valor e norma”. A inteligência artificial, no máximo, opera sobre os fatos e instrumentaliza a norma; mas os valores que dão sentido a essa estrutura escapam à frieza dos circuitos e dos modelos preditivos. A IA não tem consciência, não conhece a dor, não vive o dissenso – elementos imprescindíveis para que o Direito cumpra sua função humanizadora.

O Direito, ao contrário da IA, não é apenas conhecimento: é também compromisso. Está enraizado na cultura, nas instituições e nos dramas humanos. Como ensinava Norberto Bobbio, o ordenamento jurídico é um sistema normativo que visa regular conflitos de interesses de modo pacífico. A máquina não sente o conflito; apenas o calcula.

Em tempos de disrupção tecnológica, há quem vaticine a extinção de profissões jurídicas tradicionais, sobretudo a advocacia, sob o argumento de que máquinas poderão substituir a inteligência humana. Trata-se de uma leitura míope, fundada numa compreensão utilitarista da atividade do advogado.

A advocacia é mais que técnica: é arte, é escuta, é mediação, é compromisso ético com a justiça. Em audiências, negociações, sustentações orais e aconselhamentos jurídicos, o que está em jogo não é apenas a norma fria, mas a vida concreta dos sujeitos. O advogado interpreta, persuade, cria soluções jurídicas inovadoras, contextualiza o conflito e atua como garantidor das liberdades civis.

A tradição jurídica – forjada em séculos de reflexão filosófica, doutrinária e jurisprudencial – não pode ser relegada à obsolescência. Muito menos a figura do advogado, cuja missão constitucional, nos termos do artigo 133 da Constituição Federal, é indispensável à administração da justiça.

A inteligência artificial é, sem dúvida, uma ferramenta poderosa. Pode e deve ser utilizada para aprimorar a atuação jurídica, desde que sob o crivo do discernimento técnico e da responsabilidade ética. O futuro do Direito não está na substituição do ser humano pela máquina, mas na conjugação virtuosa entre tecnologia e sabedoria jurídica.

A advocacia do amanhã será, certamente, mais digital, mas não menos humana. Em tempos de acelerada transformação, preservar os traços essenciais da advocacia é, portanto, não um saudosismo, mas um imperativo de responsabilidade ética. Pois, na última instância, não há algoritmo que substitua a consciência do justo.

Felipe Magosso Bonilha Cavaggioni, advogado com atuação estratégica em direito empresarial e digital. Pós-graduado pela FGV-SP, com extensão em Direito da União Europeia na Università degli Studi di Torino (Itália).

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