Juntando as ideias colhidas em conversa com os pesquisadores Alexandre Chiavegatto (Universidade de São Paulo, USP), Anderson Soares (Universidade Federal de Goiás, UFG) e Chris Bahl (AI Proteins, Estados Unidos), especialistas na aplicação de métodos de IA em ciência e inovação, este artigo reúne reflexões sobre avanços e perspectivas dessa tecnologia. As entrevistas estão consolidadas no videocast Inteligência Artificial Aplicada às Ciências da Vida do Instituto de Estudos Avançados da USP, e oferecem uma visão detalhada de quem atua na vanguarda dessa área em rápida evolução.
Nas ciências da vida, a adoção da IA segue o mesmo caminho que outras grandes transformações tecnológicas: inicia-se pela coleta e digitalização de dados, passa pela redução de custos de equipamentos e insumos, e culmina na automação de processos (com um consequente aumento vertiginoso na escala de coleta de dados) e na análise comparada dessas informações. O sequenciamento genético é um exemplo claro. No início dos anos 2000, os custos eram proibitivos; hoje, mesmo análises completas podem ser feitas a preços muito mais baixos, abrindo caminho para estudos em larga escala. Essa popularização, aliada ao aumento da capacidade de processamento e à sofisticação dos algoritmos, cria as condições para que a IA seja usada para explorar detalhes moleculares com um potencial de aplicação que vai da biotecnologia à medicina personalizada.
Apesar desses avanços, a saúde humana apresenta particularidades que retardam a adoção de novas tecnologias. Diferentemente de setores em que erros são toleráveis, na medicina decisões equivocadas podem significar risco de vida. Além disso, a natureza da área impõe limitações: é muito mais difícil testar hipóteses em pacientes reais do que em experimentos de bancada, o que leva à obtenção de dados imperfeitos e até sem controle experimental. Um aspecto igualmente fundamental é a qualidade e a representatividade dos dados clínicos necessários para treinar algoritmos de IA confiáveis, uma etapa que ainda enfrenta obstáculos. Dados clínicos, por sua natureza, são heterogêneos e muitas vezes incompletos, dificultando a construção de modelos de IA com robustez e precisão.
Ainda assim, o Brasil possui uma vantagem única: sua grande diversidade genética, racial, socioeconômica e ambiental. Um algoritmo treinado com dados que refletem essa pluralidade tende a ter maior capacidade de generalização e transferabilidade, com um desempenho superior em diferentes contextos, inclusive fora do País. No entanto, para que essa vantagem se converta em liderança científica, é necessário investir em infraestrutura para coleta, integração e compartilhamento de informações, como ocorre em iniciativas como o Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (Rebec) e a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), que adotam padrões internacionais para garantir a interoperabilidade, segundo informado pelo pesquisador da Fiocruz Misael Araújo.
Entre as aplicações mais relevantes está a IA preditiva, capaz de identificar padrões que não estão descritos nos livros-texto e apoiar diagnósticos médicos com base em dados reais de pacientes. Esse tipo de IA permite detectar relações sutis entre sintomas, histórico e fatores de risco, oferecendo estimativas de probabilidade que auxiliam na tomada de decisão médica. Entretanto, a eficácia desses modelos depende do contexto; por exemplo, um algoritmo calibrado para detectar uma epidemia em uma cidade pode ter desempenho inferior em outra, devido a diferenças populacionais e ambientais.
O campo da biotecnologia também começa a explorar o potencial da IA. No desenvolvimento de vacinas e antídotos, por exemplo, já é possível empregar modelos computacionais para prever quais proteínas ou fragmentos proteicos têm maior chance de neutralizar toxinas específicas, reduzindo o uso de animais de laboratório e aumentando a especificidade do tratamento. Tecnologias de sequenciamento combinadas com algoritmos de IA permitem identificar rapidamente vírus circulantes e seus subtipos, otimizando a vigilância epidemiológica, como informado pela pesquisadora do Instituto Butantã Sandra Coccuzzo. Além disso, no design de proteínas terapêuticas, já existem algoritmos capazes de prever regiões que poderiam desencadear respostas imunológicas, permitindo projetar computacionalmente moléculas com menor potencial imunogênico.
No setor privado, startups de biotecnologia têm utilizado IA integrada a laboratórios de alto rendimento (high throughput) para projetar novas proteínas com propriedades desejáveis, como estabilidade térmica ou localização celular específica. Embora ainda seja necessário validar experimentalmente muitas dessas características, a automação de processos e a análise de grandes conjuntos de dados experimentais aceleram o ciclo de desenvolvimento. A tendência é que, conforme os modelos de IA se tornem mais precisos, parte do trabalho hoje feito em bancada seja substituída por simulações computacionais.
Esse cenário abre demandas não apenas para a pesquisa, mas também para a formação de recursos humanos. Cursos superiores já começam a incorporar projetos práticos de IA aplicada, como o curso de graduação em IA na Universidade Federal de Goiás. Em parceria com empresas e instituições de pesquisa, esse curso forma profissionais com experiência real em projetos de inovação. A necessidade por cientistas de dados com conhecimento em biologia e saúde também cresce rapidamente, impulsionada pela criação de equipes especializadas em hospitais e operadoras de saúde.
Apesar das perspectivas positivas, o investimento nacional em IA ainda está aquém do necessário, já que aportes como o Plano Brasileiro de IA (PBIA) parecem ainda modestos frente aos investimentos em outros países. Essa defasagem ameaça o aproveitamento da janela de oportunidade criada pela convergência entre avanços computacionais, disponibilidade de dados e demandas da sociedade.
O futuro das ciências da vida será moldado pela capacidade de integrar conhecimento biológico diverso e detalhado com ferramentas computacionais avançadas. Com sua biodiversidade singular, um sistema de saúde universal e uma economia fortemente apoiada na agropecuária, o Brasil reúne condições para aplicar a inteligência artificial de forma estratégica nas ciências da vida. Novamente, nosso desafio está em transformar potencial em resultados concretos, o que exigirá visão de longo prazo, investimentos consistentes e formação de profissionais capazes de atuar nessa fronteira entre computação, biologia e inovação.
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