A IA não vai acabar com a medicina nem com a advocacia. Pelo contrário.
O ciclo de previsões sombrias sobre a IA persiste, mas a realidade é outra. Crédito: Alexandre Chiavegatto Filho
Quem não gostaria de saber as doenças que vão nos afetar nas próximas décadas? Prever esse futuro incerto é um dos objetivos da Medicina, principalmente porque muitas dessas doenças podem ser evitadas. O esforço nessa direção tem uma longa história.
Com base na história médica de cada um de nós, e no que ocorreu com pessoas que possuíam histórias médicas semelhantes, os médicos já desenvolveram métodos razoáveis de previsão para muitas doenças específicas.
Por exemplo, se você fuma, tem colesterol alto, sobrepeso e não faz exercícios, existem algoritmos que permitem calcular suas chances de ter um problema cardíaco no futuro.
Mas existem centenas de outros fatores que podem influenciar essas probabilidades, como algumas infecções. E incorporar todos esses fatores para prever cada doença se torna uma tarefa extremamente complexa.
A novidade é que foi desenvolvido um sistema de inteligência artificial, similar ao ChatGPT, treinado para calcular a probabilidade de uma pessoa vir a sofrer cada uma de mais de mil doenças distintas.
Em países desenvolvidos, com um sistema médico público, como Inglaterra e Suécia, a história médica de cada pessoa é registrada em um banco de dados único. Ao contrário do Brasil, onde essa informação está espalhada em diversos lugares, como a memória da sua mãe (dados do parto e das doenças infantis), naquela gaveta onde você guarda os exames clínicos que fez durante a vida, ou na sua ficha em cada médico que consultou, nesses países há um único repositório com todos os seus dados. Cada consulta, cada diagnóstico, cada prescrição, cada cirurgia, e assim por diante.

Estudos testam capacidade preditiva de doenças pelos sistemas de IA Foto: Kannapat/Adobe Stock
Foi usando centenas de milhares desses registros que, no passado, os cientistas conseguiram, por exemplo, construir os algoritmos que relacionam o risco de doença cardíaca aos níveis de colesterol.
Com a descoberta dos métodos de inteligência artificial, é possível treinar um sistema da IA com a totalidade dos dados médicos de cada pessoa e pedir a ele que crie essas previsões. Na Inglaterra, dados de milhões de pessoas incluem tudo que o sistema de saúde sabe sobre a pessoa: desde a data de nascimento, o peso em cada consulta, que vacinas tomou, quando teve pneumonia, com que remédio foi tratado, os exames clínicos e procedimentos. Tudo.
Foram usados dados de 400 mil pessoas para treinar um sistema chamado Delphi-2M criado para relacionar a cada doença, em cada etapa da vida, as informações existentes nas histórias médicas das pessoas. Claro que o sistema de IA “redescobriu” a relação entre colesterol a doença cardíaca.
Mas ele também descobriu milhares de correlações novas – algumas fracas, outras fortes – entre o histórico da pessoa e suas doenças. No total, o sistema de IA foi capaz de calcular a probabilidade do aparecimento de 1.256 doenças distintas.
Mas será que essas previsões estão corretas? Para testar o sistema, foram usados os dados de outras 100 mil pessoas que não foram incluídas no treinamento do Delphi-2M.
Funciona assim: pego os dados de uma pessoa de 60 anos. Forneço ao sistema de IA os dados da pessoa relativos aos seus primeiros 40 anos de vida (nascimento aos 40 anos) e peço para o sistema prever o que acontecerá com a pessoa nos próximos 20 anos (dos 40 aos 60).
Em seguida, comparo o que o sistema previu que iria acontecer com o que de fato aconteceu (os dados reais dessa pessoa dos 40 aos 60). Fazendo simulações e comparações desse tipo com 100 mil pessoas, é possível medir quão precisas são as predições.
Usando um índice de acerto em que o valor 1 equivale a acertar sempre e 0,5 equivale ao resultado obtido ao acaso (pense em um teste de múltipla escolha com 2 alternativas. Acertar 50% é o que você obtém se chutar todas as respostas), essa primeira versão do Delphi-2M tem índice de acerto de 0,75 para o que vai nos próximos 10 anos. Esse índice cai para 0,7 nos 10 anos seguintes.
Um segundo teste, usando 1,9 milhões de suecos, apresentou resultados semelhantes. É impressionante, já que sabemos que em quase todas as doenças existem variáveis randômicas que afetam o surgimento de uma doença. Por esse motivo, a previsão será sempre estatística.
Os cientistas acreditam que esses modelos iniciais ainda estão distantes de serem usados no cotidiano médico, pois precisam ser aperfeiçoados e treinados com uma quantidade muito maior de dados, de pessoas de diferentes países. Mas estão impressionados com o resultado, não só pelo alto valor preditivo, o que vai permitir a adoção de tratamentos preventivos, mas pelo fato de ele prever 1.256 doenças.
Vai chegar o dia em que nosso médico vai alimentar um sistema como esse, com nossa histórica médica, receber de volta o que pode acontecer conosco e discutir os riscos que corremos nos próximos 10 a 20 anos de vida. E, mais importante, o que podemos fazer para evitar esses perigos.
Mas para isso cada pessoa terá de possuir sua história médica completa, devidamente registrada, e isso está longe de ocorrer em países como o Brasil. O sistema mais próximo que temos no Brasil é do DataSus, que inclui parte dos dados das pessoas atendidas pelo Sistema Único de Saúde.
Mais informações: Learning the natural history of human disease with generative transformers. Nature https://doi.org/10.1038/s41586-025-09529-3 2025

