
Esta coluna faz parte de uma série sobre o futuro da educação com inteligência artificial, baseada no livro O Professor Ampliado, que será lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. A cada semana, compartilhamos reflexões de capítulos do livro, conectando pesquisas, exemplos e dilemas práticos.
“Você está 80% mais rápido que a turma!” – a frase aparece na tela de um estudante de 14 anos depois de terminar um módulo digital de matemática. Parece um elogio. Mas o que esse número realmente revela? Que ele compreendeu melhor os conceitos? Que amadureceu suas dúvidas? Ou que apenas clicou mais rápido?
O tempo da pressa
Em uma escola de Belo Horizonte, um professor percebeu algo diferente: seus alunos terminavam os módulos de química em tempo recorde, acumulavam estrelas e insígnias, mas não conseguiam explicar o que haviam “aprendido”. Estavam consumindo conteúdo como quem assiste a vídeos em velocidade 2x: tudo passa rápido demais para deixar marca.
Essa cena se repete em diferentes partes do mundo. Muitos sistemas digitais de aprendizagem baseados em inteligência artificial transformam a educação em uma corrida contra o relógio, embalada por elementos de gamificação. O progresso vira sinônimo de velocidade. Rankings, cronômetros e recompensas criam a ilusão de avanço. Mas aprender não é atravessar fases como em um videogame. É experimentar, errar, voltar atrás, digerir a dúvida, fazer conexões inesperadas.
Quando reduzimos o processo a métricas de tempo, a experiência humana da aprendizagem se empobrece. Ou pior: ela se deforma. Um estudo da OCDE identificou que 58% dos estudantes que utilizam sistemas de IA adaptativa relatam sentir pressão para acompanhar ritmos acelerados, o que frequentemente prejudica a aprendizagem mais profunda. Pesquisas também apontam uma relação entre o uso excessivo de telas em ritmo acelerado e o bem-estar mental de adolescentes, sinalizando um tipo de solidão silenciosa e crescente: alunos conectados, mas não necessariamente em contato consigo mesmos, com os colegas ou com o que estão estudando.
Estamos formando estudantes que realmente compreendem o que estudam, ou apenas especialistas em clicar rápido e passar de fase?
Pedagogia da lentidão: o que a ciência nos ensina
A ciência da aprendizagem aponta para outra direção. Pesquisadoras como Mary Helen Immordino-Yang e Linda Darling-Hammond mostram que o aprendizado significativo depende de tempo, emoção e reflexão. O cérebro precisa de intervalos para organizar memórias, fazer conexões inesperadas e transformar informações em conhecimento duradouro. Aprender exige espaço para processar, para esquecer um pouco, para que o insight amadureça.
Em outras palavras: é no silêncio entre as notas que se compõe a sinfonia. É na pausa que nasce a compreensão.
Desacelerar, portanto, não é perder tempo. Pelo contrário: é nesse espaço mais amplo que surgem as aprendizagens mais profundas. Alguns educadores estão chamando isso de pedagogia da lentidão: um convite para criar pausas intencionais, tempos de respiração cognitiva e espaços de reflexão dentro do olho do furacão digital.
Algumas escolas já experimentam práticas concretas nessa direção. A cada três atividades digitais, o sistema propõe um “tempo de respiração”. Não para descansar, mas para refletir. Perguntas simples aparecem na tela: “O que você realmente entendeu até aqui?”, “Que dúvida ainda ficou?”, “Como está se sentindo?”. Mas a resposta não é digitada; é escrita à mão, em cadernos, com lápis ou caneta. Sem algoritmos, sem medição, apenas presença e pausa… e a diferença do processamento cognitivo entre um texto digitado e outro escrito à mão.
Outros educadores intercalam módulos digitais com práticas offline: rodas de conversa, dramatizações rápidas sobre conceitos, diários reflexivos, e momentos de silêncio consciente. A IA mapeia dados, mas é o professor quem transforma esses dados em experiências vivas. São pequenos gestos que devolvem ao estudante a chance de se escutar — e não apenas de ser medido.
A pergunta incômoda
Cabe então à escola se perguntar: estamos formando navegadores ágeis de plataformas ou construtores de conhecimento? Porque velocidade não é sinônimo de profundidade. Ser “80% mais rápido” pode significar 100% mais superficial.
Em uma cultura da urgência, o ato verdadeiramente disruptivo talvez seja o de desacelerar. De resistir à tirania da velocidade algorítmica para aprofundar o que há em nós de humano. Como lembra a psicóloga Carol Dweck, transformar mentalidades não é eliminar dúvidas ou medos, mas desenvolver a coragem de permanecer em estados de incerteza criativa.
O desafio de hoje não é acompanhar algoritmos, mas resistir a eles quando reduzem a educação a cliques cronometrados. A aprendizagem precisa de tempo para respirar, de dúvidas que amadurecem devagar, de silêncios que fecundam ideias. Precisa, enfim, do tempo próprio da mente humana — um tempo que não cabe em cronômetros, mas floresce nos intervalos: entre uma pergunta e outra, entre o erro e a descoberta, entre o silêncio e o entendimento.
A inteligência artificial pode ser uma aliada nesse processo, mas isso requer o respeito ao ritmo em que as compreensões verdadeiras nascem. Enquanto a IA celebra “80% mais rápido que a turma”, a neurociência nos lembra que é no vão entre as notas que se compõe a sinfonia do aprendizado.
Na próxima semana, seguimos esta série olhando para outro dilema: como a inteligência artificial, além de acelerar o tempo, pode também projetar sombras sobre o papel do professor — um eclipse que ameaça a autonomia e a curadoria docente.
*O livro “O Professor Ampliado” é uma co-autoria de Rafael Parente, Renato Brito e Maria Cristina Mesquita, uma publicação da Cátedra UNESCO da Universidade Católica de Brasília.

