O mercado global de energia vive uma mudança silenciosa, porém definitiva: a discussão deixou de orbitar a substituição — petróleo saindo, renováveis entrando — e passou a gravitar em torno da expansão.
O mundo não está falando apenas de transição energética, mas de adição energética: mais petróleo e gás, mais renováveis, mais redes, mais armazenamento, mais conectividade e, sobretudo, mais eletricidade para alimentar o novo motor da economia mundial — a inteligência artificial.
O momento é paradoxal, mas lúcido: descarbonizar continua sendo imperativo, porém o caminho pragmático aceito pelos grandes players passa pela convivência simultânea de múltiplas fontes.
O petróleo e o gás voltam a ser celebrados como aceleradores de crescimento, as renováveis se consolidam como vetor de competitividade, e a infraestrutura de redes e digitalização se torna o gargalo central da próxima década.
Esse é o retrato global. E é exatamente aqui que a pergunta incômoda surge: onde o Brasil está nesse jogo?
O Brasil vive uma condição híbrida e, ao mesmo tempo, perigosa. Possui uma matriz elétrica majoritariamente renovável, algo que qualquer país desenvolvido invejaria.
Mas também possui uma das infraestruturas mais subdimensionadas para uma economia que se prepara para IA, data centers, carros elétricos, automação industrial, 5G, digitalização das cadeias produtivas etc.
Enquanto o mundo realoca trilhões para redes inteligentes, linhas de transmissão, sistemas de armazenamento e cibersegurança energética, o Brasil ainda debate se a regulação acompanha ou freia.
E, aqui, entra a camada comportamental: o país está aprisionado na ilusão da matriz limpa — um viés de confirmação sofisticado, que produz sensação de conforto e reduz a percepção de urgência.
O fato de termos renováveis não significa que tenhamos energia barata, nem energia disponível nos pontos de consumo, nem segurança jurídica para capital intensivo, nem previsibilidade regulatória compatível com investimentos de 20 a 40 anos.
Enquanto os países mais competitivos integram energia e IA como um só sistema, o Brasil vive, em certa medida, uma cegueira cognitiva.
Ainda tratamos energia como um setor, quando o mundo já a trata como infraestrutura decisória de competitividade. Quem controla energia controla IA. Quem controla IA controla inovação. E quem controla inovação define o futuro industrial.
Esse elo só fica invisível para países que ainda acreditam que energia é só “conta de luz”. O custo disso não é filosófico; é econômico.
Um país que traz data centers, mas não ajusta a regulação da energia; que estimula veículos elétricos, mas não constrói rede de recarga; que subsidia inovação, mas ignora o custo marginal da eletricidade na indústria, comete um erro estratégico clássico: incentiva o consumo antes de garantir a oferta.
E, quando a conta chega, improvisa. A improvisação, no setor energético, costuma custar décadas.
O que está em jogo é a precificação do futuro. Investir em infraestrutura hoje parece caro, não investir será impagável.
Atrasar licenciamento parece pragmático, continuar perdendo projetos para países que oferecem previsibilidade é suicídio econômico.
Exigir mitigação absoluta de qualquer risco pode soar responsável, transferir o risco integral ao investidor só o expulsa do país. Cada ato normativo, cada consulta pública, cada decisão judicial, de forma consciente ou não, altera o custo de capital.
Na energia, custo de capital é destino. Países que minimizam incertezas regulatórias atraem players globais; países que tratam energia com volatilidade, complexidade documental e letargia institucional atraem apenas aventureiros ou oportunistas.
E o Brasil precisa decidir de que lado quer ficar.
Existem ainda efeitos comportamentais profundos na tomada de decisão política e empresarial brasileira.
O viés do presente incentiva governos a anunciar expansão de renováveis, porque isso gera manchete, mas adia investimentos em transmissão, porque isso é caro, lento e não dá voto.
O otimismo ilusório faz empresas acreditarem que “o crescimento da demanda se ajustará naturalmente à oferta”, como se mercados energéticos se resolvessem por gravidade.
E o viés de aversão à perda leva reguladores a preferirem a norma segura e restritiva à norma inovadora e eficiente, produzindo a falsa sensação de que proibir riscos protege o consumidor, quando na prática o expõe a tarifas mais altas, energia mais escassa e menor competitividade econômica.
O Brasil está diante de uma bifurcação estratégica. Se tratar energia apenas como um tema ambiental ou setorial, ficará para trás na corrida global de industrialização digital.
Se tratar energia como plataforma de competitividade (e construir uma regulação que permita investimento massivo, planejamento integrado, segurança jurídica e interoperabilidade entre energia e IA) pode assumir papel de protagonista, não apenas produtor de energia, mas produtor de futuro.
A urgência é econômica. Empresas globais já tomam decisões baseadas no preço e na confiabilidade da eletricidade.
Governos já usam energia como instrumento geopolítico. E a IA está convertendo energia em riqueza mais rápido do que os países imaginam.
A questão central é se o Brasil terá a coragem institucional de agir sem o conforto do consenso, antes que a necessidade imponha decisões com custo inflacionado.
Não estamos disputando apenas o setor elétrico. Estamos disputando a capacidade do país de permanecer relevante na economia global. Energia é soberania.
E enquanto o mundo acelera na direção da “adição energética”, o Brasil precisa escolher entre protagonizar esse capítulo — ou assistir à história sendo escrita de fora.
Bianca Bez é advogada da área de Contencioso e Arbitragem com ênfase em Energia do BBL Advogados.
Daniel Becker é sócio das áreas de Contencioso e Arbitragem, Proteção de Dados e Inteligência Artificial do BBL Advogados.

