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Como a Inteligência Artificial está transformando o sistema judicial atuando de forma mecânica

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Como se fala aqui ou acolá, no campo do conhecimento ou da vivência, é fato que tempos sombrios se instalaram e que, no âmbito jurídico, somente a iluminação propiciada pela sabedoria pode dissipá-los, por isso não podemos atuar como “os mais” (os dormentes ou ignorantes que seguem a malta sem maiores reflexões) de Heráclito, mas sim como “os poucos” (os despertos ou sábios) que refletem, questionam ou criticam de forma fundamentada o estabelecido.

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No âmbito judicial, em especial após Constituição de 1988, há um claro e crescente movimento de mecanização da justiça que está sendo impulsionado com a chegada da IA, o que é público e notório.

A uma necessidade por parte dos tribunais superiores de desafogar o grande e crescente acervo que acumulam com o recrudescimento do acesso à justiça pós-1988. A maneira utilizada vem sendo a mecanicista. É justiça em números, “precedentes obrigatórios” (temas, teses repetitivas, súmulas vinculantes) e agora a IA indo além do necessário, produzindo, como já se noticiou, sentenças para reduzir o acervo e viabilizar o status de juiz operoso para possível promoção por merecimento.

Há necessidade de se investigar esse sistema de produção, afinal a mecanização da Justiça permite que se façam grandes injustiças, seja por meio de sentenças robotizadas, portanto, produzidas a toque de caixa sem consciência e bom senso (o que só a inteligência natural — IN a detém), seja por restringir cada vez mais o direito-garantia fundamental do acesso à justiça em prol de um input que apenas visa um output que proporcione uma melhor saúde do acervo judicial mas não do jurisdicionado. Vale dizer, esse viés judicial de atuação mecanicista não visa o bem-estar social mas sim, na essência, o bem-estar institucional, o que é de se lamentar em um Estado Democrático e Social de Direito.

Essa mecanização crescente da Justiça nos remete à “forma de pensar mecanicista, especialmente a matemática” [1] que “tem significativa importância” [2] na filosofia cartesiana, por isso necessário não deixarmos de lado, como sustenta Horkheimer, a filosofia social que consiste primariamente “no desenvolvimento do pensamento crítico e dialético” [3] porque a “verdadeira função social da filosofia reside na crítica ao estabelecido” [4].

O mecanismo

O que vincula no civil law? É a lei, fonte imediato do Direito. Assim, não há dúvidas que se pode ter como impróprio se falar em precedentes, teses e temas vinculantes, mas apenas na existência de súmulas vinculantes (CF; artigo 103-A), sendo que sobre estas, Cármen Lúcia Antunes Rocha numa passagem de impactante escrito crítico sobre a proposta do surgimento das Súmulas Vinculantes por emenda constitucional, já alertava com propriedade à época:

“O Supremo Tribunal Federal terá sido erigido à condição de órgão reformador da Constituição, com a possibilidade de criar normas constitucionais, sem participação alguma do cidadão, sem possibilidade alguma sequer de sua mudança pelo processo legislativo infraconstitucional. A finalidade que se afirma ser a buscada com a adoção do instituto da “súmula vinculante” é a de diminuição do serviço dos tribunais, especialmente os superiores. Ocorre que, se há uma pletora de recursos extraordinários que têm como fundamento ou argumento o descumprimento de norma constitucional e se a súmula é o instrumento de uma norma que precisa ter o seu controle aperfeiçoado, há que se dotar o cidadão da possibilidade de ir ao Poder Judiciário contra a lesão ou ameaça que para ele decorra do seu desacato, como se dá com qualquer outra norma. Nem poderia ser diferente, aliás, por força do disposto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República [5].”

Insiste-se, notadamente os precedentalistas nacionais, pós NCPC de 2015, na propagação no nosso sistema do civil law de um instituto inerente ao comnon law, ou seja, dos precedentes propriamente ditos. Sobre esse fenômeno, Lenio Streck [6] e Pablo Malheiros [7], dentre outros, têm repetidamente ao longo do tempo, de uma forma ou de outra, enfrentado com consistência a sua propagada existência entre nós, notadamente os qualificados ou vinculantes [8] e os chamados persuasivos, o que tem causado Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo (Leer) [9].

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Streck foi autor da emenda que apresentou a redação do artigo 926 do CPC que tinha o intuito correto dos tribunais de uniformizar a jurisprudência para mantê-la estável, íntegra e coerente com base nas circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram a sua criação; vale dizer, mais previsível, mas isso não criou o status que os precedentalistas e os tribunais superiores passaram a dar aos precedentes lastreados no artigo 927 do CPC, afinal, toda e qualquer decisão judicial pode se tornar um precedente a ser considerado no presente para aplicação referente a um fato passado, não para o futuro onde ainda não há perguntas [10], salvo se, neste caso – do precedente –, serviu eventualmente de base para a criação legislativa.

Isso decorre da basilar lição de que – no nosso sistema constitucional do civil law – vinculante é a lei que é sempre editada para o futuro. O direito é sempre presente quando da sua aplicação, ou ainda que, legislado, figure como apenas uma expectação futura do seu surgimento diante do caso concreto, quando então se buscaram respostas às perguntas existentes.

A jurisprudência dos tribunais superiores, com anuência de parcela da doutrina, insiste na existência e aplicação de precedentes obrigatórios e vinculantes num verdadeiro movimento de commonlização [11] do nosso sistema jurídico, contudo, como Lenio Streck e outros que já se manifestaram corretamente inúmeras vezes, no nosso sistema jurídico não há precedentes propriamente dito, como aqueles do common law, todavia admitimos que podemos ter como existentes no nosso sistema quando, por exemplo, julgados repetitivos num mesmo sentido formam uma jurisprudência que pode dar azo a  uma súmula simples ou vinculante, mas esta, por si só, não será e nem se deve ter como um precedente.

A existência de precedentes obrigatórios/vinculantes se dá por parte da doutrina e do Supremo Tribunal Federal com base no artigo 927 do CPC [12]. Sustentamos que tudo que é vinculante é obrigatório, mas a recíproca não é verdadeira.

Os denominados precedentes obrigatórios, também chamados de qualificados por sua força vinculante, oriundos de um tribunal superior, devem ser de observância obrigatória pelos juízes e demais tribunais em respeito à necessária estabilidade que a reclamada segurança jurídica proporciona, mas isso não os torna vinculantes por seu conteúdo, mas apenas pela sua existência que impede que sejam ignorados pelos magistrados.

No caso concreto podem ser inaplicáveis pela simples razão prática de que, como é de sabença geral, cada caso é um caso, podendo, em se tratando de matéria de fato, serem semelhantes mas nunca iguais, por isso podem, nesses casos, reclamar decisões judiciais eventualmente distintas e, como sempre, devidamente fundamentadas (CF; artigo 93, IX c/c CPP; artigo 315 e CPC; artigo 489) de forma a justificar a não aplicação daquele denominado precedente obrigatório, afinal uma das garantias do jurisdicionado é a independência funcional do magistrado que não pode se deixar corroer pela tendência crescente de a asfixiar por meio de uma prestação jurisdicional mecanizada por temas e teses vinculantes, precedentes obrigatórios e súmulas vinculantes.

Sobre esse aspecto, reitero mais uma vez, já lecionava Jacques Derrida:

“Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode nem deve absolutamente garantir. Pelo menos, se ela a garante de modo seguro, então o juiz é uma máquina de calcular; o que às vezes acontece, o que acontece sempre em parte, segundo uma parasitagem irredutível pela mecânica ou pela técnica que introduz a iterabilidade necessária dos julgamentos; mas, nessa medida, não se dirá do juiz que é puramente justo, livre e responsável [13]”.

Há de se ter maior previsibilidade, estabilidade, coerência e integridade das decisões judiciais que geram segurança jurídica. Esta se torna prejudicada na medida em que a atuação dos tribunais superiores se pauta, prioritariamente, na redução de demandas que batem às suas portas, afinal não se pode deixar de considerar que todo e qualquer magistrado procura compreender a norma contida no texto legal para a interpretar no momento de sua aplicação.

Dessa forma, como corretamente já sustentou com razão Lenio Streck [14], fomenta-se a não obediência pelos juízes e tribunais quando se querem produzir precedentes, súmulas, teses e temas como se fossem normas gerais e abstratas a serem aplicadas cegamente para o futuro. Obsta, nesse sentido, em nome de uma denominada “segurança jurídica” que mais parece ser interna corporis, diante do caso concreto, que se realize atividade jurídica por meio da inerente interpretação judicial. Vale dizer, busca-se a mecanização da Justiça que leva a uma justiça inumana que restringe cada vez mais, de uma forma ou de outra, o acesso amplo ao direito-garantia de acesso à justiça.

Considerações finais

Ante o exposto, há de se repensar, como insistentemente venho sustentando, que justiça temos e queremos porque o modelo com que estamos lidando vem crescentemente atuando de forma mecanicista e, ao que se avizinha, tendente a se intensificar com a inserção no sistema judicial da IA que, se mal utilizada como instrumento inovador e revolucionário, pode levar a concretização de grandes injustiças sociais por ausência de consciência e bom senso que só o magistrado pode deter diante do caso concreto.

Hão os juízes e tribunais, inclusive os superiores, de fomentar a produção de decisões coerentes, estáveis e íntegras que podem ser iluminadas na base pelos denominados precedentes para gerar a tão reclamada e necessária segurança jurídica, mas estes não podem, assim como as teses e temas se terem como vinculantes sob pena de aniquilar a humanização que deve nortear toda e qualquer decisão judicial não robotizada.

 


Notas:

[1] HORKHEIMER, Max. La función social de la filosofia. In: HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica. Tradução do espanhol de Rafael Cordeiro Silva. Tradução do alemão de Edgardo Albizu e Carlos Luis. Buenos Aires: Amorrortu, 1990, p. 10 (282).

[2] Ibidem.

[3] Idem, p. 12 (288).

[4] Idem, p. 11 (287).

[5] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Sobre a súmula vinculante. In: Brasília a. 34, n. 133, jan./mar. 1997, p. 58.

[6] Senso Incomum: A pergunta: o que é necessário para existir um precedente?. Consultor Jurídico. São Paulo, 20 abr. 2023. Disponível aqui.

[7] Diário de Classe: Precedente vinculativo e persuasivo e a ratio decidendi. Consultor Jurídico. São Paulo, 13 fev. 2021. Disponível aqui.

[8] Ver STF-RE 655.265.

[9] É quando somos obrigados a repetir “milhares de vezes as mesmas coisas, as mesmas obviedades do óbvio. Ver com mais profundidade: STRECK, Lenio. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Dialética, 2023, p. 125.

[10] Idem, p. 201. “A Crítica Hermenêutica do Direito não admite respostas antes das perguntas, porque o direito é um fenômeno interpretativo; é sempre produtivo (e não reprodutivo). Vale dizer que no direito se produzem (e não se extraem) os sentidos, circunstância que não se confunde com relativismo (afinal, existem respostas corretas)”. Ver também: STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[11] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, George. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014c, p. 28. No mesmo sentido: TOMELIN, Georghio. O Estado Jurislador. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 155. Assinala o autor, a seu modo, que entre nós “tem havido um movimento de commonlização do direito brasileiro”.

[12] STF-RE 655.265.

[13] Força da Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 44-45.

[14] Senso Incomum: Por que os precedentes não são obedecidos?. Consultor Jurídico. São Paulo, 13 jun. 2024. Disponível aqui.

Como servidor público há mais de 16 anos, posso afirmar que a Inteligência Artificial está revolucionando a forma como lidamos com a atuação judicial. A nova ordem mecanicista impulsionada pela IA traz consigo inúmeras vantagens, como a agilidade na análise de processos, a redução de erros e a maior eficiência na tomada de decisões.

É fundamental que aproveitemos ao máximo essas tecnologias para aprimorar nossa sociedade e obter uma melhor qualidade de vida. A IA pode nos ajudar a garantir um sistema judicial mais justo e transparente, facilitando o acesso à justiça e garantindo direitos fundamentais para todos.

Portanto, é importante refletirmos sobre como podemos utilizar a Inteligência Artificial de forma ética e responsável, buscando sempre o benefício comum e a evolução constante de nossas práticas judiciais. Em última análise, cabe a cada um de nós tirar suas próprias conclusões sobre o impacto e o potencial da IA na sociedade.

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