Um prato de flores pintado à mão na fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, só pode ser feito pelos mais experientes. “Um médico estuda seis anos, a especialidade mais dois a quatro anos. Na Vista Alegre são dez anos até pintar flores à mão.” As palavras, de assombro, são de Francisco Carvalheira, presidente da Laurel, a associação portuguesa que defende a excelência e o luxo com o selo português, e confirmadas por Nuno Barra, administrador da centenária empresa portuguesa. Sim, é preciso muito tempo para chegar a esse nível de mestria.
O desenho pode ser igual em muitas casas, mas seguramente nenhum será cópia fiel — e é nessa perfeita imperfeição que está o seu valor. “Quando quem visita a fábrica é colocado frente a frente com as pessoas que pintam descobrem que o que cobram — 800/ 900 euros — é pouco! As pessoas que têm paixão por isto sabem que eles atingem estes valores”, nota Francisco Carvalheira.
Enquanto se olha para a inteligência artificial — entre a euforia e o receio —, em empresas como a Vista Alegre o caso é outro. Entre tantos moldes, e processos industriais, mesmo em 2025, há muito que não pode ser feito por uma máquina.
Ao dia de hoje a criatividade não se consegue automatizar. A inteligência artificial sugere, mas vai basear-se no que já existe.
“Tudo o que é pintura à mão, olaria, escultura, não é possível industrializar. Os pratos têm acabamentos à mão. Numa chávena de café, a chávena é colada à mão. A parte central sai num molde, a asa sai em outro molde e tem de ser colada manualmente”, conta Nuno Barra, administrador com o pelouro do marketing, e-commerce, design de produto e retalho de Portugal. É uma dança única que fazem com a mão, olho e experiência. “Há coisas que não se podem transformar em algoritmo.” Pelo menos para já (e ainda que possa ter um bom papel no desenvolvimento da marca, como explica mais adiante).
“Ao dia de hoje a criatividade não se consegue automatizar. A inteligência artificial sugere, mas vai basear-se no que já existe”, analisa Nuno Barra. Falta quebrar regras, inovação e emprestar tempo às ideias para que aconteçam.
Na Vista Alegre, detida desde 2009 pelo grupo Visabeira, queriam há muito desenhar e fabricar candeeiros (como já acontece hoje), conta Nuno Barra. Encontrar a pessoa certa é o primeiro passo, neste e em todos os casos. A parceria fez-se com o designer britânico Ross Lovegrove, cujo percurso se cruza com o nascimento do walkman da Sony. “O modelo era tão complexo que demorámos cerca de três anos, mas o resultado final foi espetacular.” Chama-se Nervi e ilustra bem esse casamento entre o design, a criação de base artesanal e a repetição em série na indústria. “Tecnicamente, é quase uma obra de arte — foram precisas imensas técnicas para chegar aqui”, conta Nuno Barra.
À mesma velocidade que a inteligência artificial entra no quotidiano, cresce o interesse e o valor dos artífices. No mercado do luxo, onde a excelência é o valor sobre todos os valores e onde o “feito à mão” tem resistido a todas as investidas, os crafts estão em alta. Ao longo do último ano, de forma muito discreta, a Chanel, que resiste a afirmar-se como um grupo de luxo e prefere manter a aura de maison independente, tem vindo a adquirir pequenas empresas, e ateliers, por toda a França, especializadas em confecção de luxo, marroquinaria e pele. Alguns eram fornecedores da marca há mais de 20 anos, como a Confection de Sully, a Borlis, o Atelier H ou a Haspolo. É o saber-fazer (know-how ou savoir-faire) que protegem.
“O luxo, a excelência, está baseada na Europa. 90% do luxo mundial é produzido na Europa. É a única coisa que nós temos e mais ninguém tem”, diz Francisco Carvalheira, presidente da Laurel, a associação onde nasce o projeto Saber Fazer Português, pensada para defender saberes tradicionais portugueses, e um dos membros da ECCIA (European Cultural and Creative Industries Alliance), plataforma que reúne estes conhecimentos em vários países europeus. “No somatório, representa 750 das principais marcas, além do impacto social”, diz Francisco Carvalheira.
O novo luxo tem a ver com autenticidade. Não há nada mais autêntico do que um artífice, porque não faz duas peças iguais.
“Estas marcas morrem se não houver essa proteção. A Europa, há dez anos, esteve em sérios riscos de perder muito do seu saber-fazer, de perder a sua génese”, diz Francisco Carvalheira. Essa ameaça era a produção fora do Velho Continente. “Estamos muito centrados na defesa do artífice português”, diz o presidente da Laurel, distinguindo o artesão do artífice. “O artífice é o faz da arte o seu ofício. O profissionalismo que está por trás.”
A cada vez maior ausência da mão humana na indústria provocou uma reação, segundo Francisco Carvalheira. “O novo luxo tem a ver com autenticidade. Não há nada mais autêntico do que um artífice, porque não faz duas peças iguais”. Para um país que guarda saberes com 900 anos “são excelentes notícias”.
Novas empresas, saberes ancestrais
E se os saberes são antigos, as marcas — e as empresas — podem ser novas. É o caso da Campante, de André Campante, que se lançou na criação de um produto que resgata os bordados da Lixa. O tempo tem dado razão à sua ideia (ou, mais rigorosamente, da sua mulher).
“A nossa visão até surge com a recuperação de toalhas antigas, às quais demos um novo design e cor — criar uma marca que mantém a tradição, com tudo feito à mão, tentando manter as técnicas de bordado antigas, mas dando-lhes um design contemporâneo”, resume André Campante. “As pessoas esperam meses pela sua toalha. Isso é um luxo — está no valor da peça que vendemos”, conta. Uma toalha da Campante pode chegar aos 700 euros. O trabalho é 100% manual.
Após anos a trabalhar numa consultora em Espanha, André Campante voltou a Portugal. A mulher, em casa da avó, recuperou toalhas com bordados da Lixa, pediu novos desenhos e propôs-lhe fundar uma marca que ressuscitasse esse saber ancestral. Felisberto, que é da Lixa, faz os desenhos para as toalhas que depois são entregues às bordadeiras, mulheres que fazem este trabalho nas suas casas, “como um hobby, fora de horas”. Tudo é artesanal neste processo e tudo faz parte desta visão — incluindo o packaging. André Campante, que é de gestão, reuniu a equipa de design, marketing e comunicação e lançou a Campante.
“É lento, difícil, e as toalhas atingem preços muito elevados”, constata. “Vendemos para o Yeatman e nas nossas plataformas — para os EUA, Inglaterra, França, Itália e Espanha — e também em lojas em Nova Iorque e Los Angeles, o nosso produto valoriza quando se vê”, diz o CEO da Campante.
A muitos quilómetros da Lixa, Felgueiras, e com o oceano de permeio, na Madeira, a Bordal leva desde 1962 criando peças únicas que chegam a todas as partes do planeta. A marca “mantém viva uma arte que atravessa séculos”. Hoje, são “a única fábrica de bordado da Madeira aberta ao público, onde se pode vivenciar todo o processo artesanal num verdadeiro museu vivo instalado no coração da nossa produção”. Como a Campante ou a Vista Alegre, a Bordal é algo exclusivo. A sua excelência está no trabalho feito e no tempo, longo, que demora a produzir uma das suas peças. “Tempo, dedicação e autenticidade” nas palavras de Susana Vacas
“Cada peça nasce de um gesto ancestral. Todo o processo é 100% manual — tal como há 150 anos: do desenho ao picotar, da estamparia com tinta de índigo ao trabalho minucioso das nossas bordadeiras, que continuam a bordar a partir de casa, com o mesmo saber-fazer passado de geração em geração. Cada bordado é depois lavado e engomado com o cuidado e respeito que uma peça de arte exige”, explica a managing partner da Bordal.
Nos últimos anos, temos reforçado a aposta no design contemporâneo, na curadoria cultural e na comunicação de marca, elevando o bordado Madeira à categoria de arte têxtil e expressão identitária. Reformulamos o museu e estamos a criar novas formas de contar esta história com alma.
Susana Vacas está ligada à Bordal há 27 anos e aceitou projetá-la no século XXI. “Rejuvenesci processos, internacionalizamos a marca, levámos o nosso bordado a feiras de prestígio e a colaborações icónicas, como com a Chanel. Hoje, os nossos produtos chegam aos Estados Unidos, a países árabes e a várias capitais europeias — sempre com a assinatura da excelência artesanal madeirense.”
“Nos últimos anos, temos reforçado a aposta no design contemporâneo, na curadoria cultural e na comunicação de marca, elevando o bordado Madeira à categoria de arte têxtil e expressão identitária. Reformulamos o museu e estamos a criar novas formas de contar esta história com alma”, diz.
E ao contrário: que fará a IA pelos artífices?
Nuno Barra faz a reflexão ao contrário: onde é que a inteligência artificial vai entrar na Vista Alegre? “Pode-se facilitar alguns processos a vários níveis, não só na produção, mas também no marketing, logística, gestão de armazém, tudo mais assente em tecnologia a partir de algoritmos”, afirma.
Outro exemplo: “Quando os criativos criam uma coleção nova, na sua construção em 3D, como é que funciona uma jarra num espaço clássico ou contemporâneo?”. “A produção em si pode beneficiar nas atividades à volta da produção e na gestão de armazéns. Tem de produzir dez jarras porque se faz um cálculo da procura; o algoritmo vai ver a informação toda que está para trás, vendo a gestão das encomendas, e vai otimizar todo o processo. É uma parte importante porque é uma empresa que exporta muito. Otimização do tempo de produção, compras de matéria-prima: consegue-se fazer projeções em maior escala. E no design, a mesma coisa: a construção em 3D — na casa de um cliente, como é que a peça funciona…”
IA não é uma ameaça. “Pode ajudar na comunicação, onde invisto muito, e a pesquisar mercados. Mas na produção não. Até o desenho é manual.
Não, a IA não é uma ameaça. “Pode ajudar na comunicação, onde invisto muito, e a pesquisar mercados. Mas na produção não. Até o desenho é manual”, diz. André Campante reflete: “A minha grande vantagem é essa: autenticidade. Se já é valorizada, vai sê-lo ainda mais no futuro — com semanas de trabalho menores, mais espaço para o lazer”. Se há um perigo no horizonte, é outro: “A ameaça é desaparecerem as bordadeiras.” Hoje, a idade mínima ronda os 50 anos. Muitas aprenderam com mães e avós, mas as filhas não dão continuidade a este saber. Uma missão mais prosaica na estratégia da Campante. “Quero atrair jovens que gostem desta ligação, porque, se não continuar, acaba.”

