O sotaque húngaro de Adrien Brody em “O brutalista”, aprimorado pela ferramenta Respeecher, quase custou o Oscar ao ator. Mas já anunciava, no início de 2025, que o papo sobre inteligência artificial no audiovisual ia ser longo — e polêmico. No início de dezembro, o acordo da Disney com a Open IA para o uso de personagens clássicos na plataforma de vídeo Sora confirmou: até os minutos finais do ano, ninguém no audiovisual passou alheio ao tema. O audiovisual, é claro, é apenas uma das áreas culturais inseridas no debate, o que motiva a série de reportagens em que o GLOBO trata das mudanças que a inteligência artificial já causou e ainda pode causar na produção artística contemporânea.
—É a grande questão do momento. Todo mundo está falando sobre isso, obviamente — disse James Cameron em entrevista ao GLOBO para o lançamento de “Avatar: Fogo & cinzas”.
Cameron: ‘Ia pode ser domada’
O cineasta, usualmente citado como um futurologista apocalíptico por ter inserido na história de “O exterminador do futuro”, em 1984, uma espécie de IA que se volta contra os humanos, a Skynet, hoje tem uma visão menos sombria ao integrar o conselho de uma das gigantes americanas da tecnologia generativa.
—Entrei para o conselho da Stability AI para estudar esse negócio e ver como funciona, como eles pensam, como os desenvolvedores trabalham. E, na verdade, os desafiei a criar ferramentas que possam se integrar aos fluxos de trabalho de efeitos visuais existentes. Minha ideia é não tornar os artistas humanos obsoletos, mas sim acelerar nosso ritmo — diz o cineasta. — Os grandes filmes que amo fazer custam muito caro. Os processos de efeitos visuais ainda são caros. Se a receita dos cinemas continuar caindo, esses filmes deixarão de existir. Penso que a IA pode ser domada para reduzir custos e realizar certas partes do fluxo de trabalho.
Diego Martins, diretor e fundador do estúdio A Dream By, também defende o uso favorável de ferramentas de IA no audiovisual, com o objetivo de alavancar e diminuir processos. Ele lembra que a tecnologia já está amplamente presente na indústria:
— Hoje todas as ferramentas de pós-produção já estão com IA integrada. Está chegando um momento onde a IA estará dentro dos software de VFX (efeitos especiais) — destaca o brasileiro. — Uma coisa interessante é pensar a IA como descentralização e democratização. A gente sabe que audiovisual é caro. E você demora muito tempo para levantar grana pra um projeto, seja um curta ou um longa. Para fazer hoje um projeto com IA, você pode fazer com menos dinheiro e estar longe dos grandes centros, como o Rio e São Paulo.
A conversa parece ser mesmo essa entre criadores mundo afora. Embora cineastas como Guillermo del Toro e Tim Burton venham se manifestando constantemente contra o uso da inteligência artificial na indústria audiovisual, muitos tentam debater sobre os limites da tecnologia.
— Todos estão percebendo que, se não pode vencê-los, é melhor se juntar a eles — destaca Eline Van der Velden, fundadora da produtora Particle 6, comentando o acordo entre Disney e OpenAI. — Acho que a IA sofre com um problema de relações públicas. A maioria das pessoas ouviu dizer que ela vai tirar empregos e que faz mal ao meio ambiente, mas temos visto que isso não é verdade.
Van der Velden e a Particle 6 fizeram barulho em 2025 com a apresentação de Tilly Norwood, primeira atriz criada por IA. O anúncio caiu como uma bomba em Hollywood e rendeu críticas dos sindicatos de atores e roteiristas, que vêm manifestando preocupação com o tema desde as greves simultâneas de 2023.
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— Tilly começou mesmo como um projeto artístico. Eu tinha visto esses personagens e influenciadores feitos com IA e pensei: “quero criar um que consiga contar histórias no nosso mundo”. E eu não queria criar um deepfake de uma atriz existente — diz a executiva. — Entendo que muita gente tenha pensado que ela iria tomar seus empregos. Felizmente, não é esse o caso. A ideia era apenas mostrar o que é possível. Tilly não vai tirar o trabalho de nenhum ator ou atriz de verdade. A ideia é que Tilly funcione como uma espécie de veículo de narrativa, uma forma de diretores aprenderem a trabalhar com IA.
Se em algumas áreas do audiovisual o cenário é de possibilidades, em outras as implicações são mais sombrias e despertam medo. É o caso da dublagem. Profissionais do meio vêm se manifestando com frequência contra ferramentas que substituem seu trabalho e já são realidade no meio.
Em fevereiro, usuários do Prime Video se depararam com um filme espanhol, “O silêncio de Marcos Tremmer”, 100% dublado a partir de ferramentas de IA, o que gerou críticas não apenas de dubladores, mas também de espectadores que notaram erros básicos de tradução.
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“A dublagem está horrível, porque não tem sentimento, não foi feito por uma pessoa. Está tudo sincronizado, as palavras estão ditas, mas não tem respiração”, disse o dublador Robson Kumode em vídeo, nas redes sociais.
Fábio Azevedo, presidente da Dublar (Associação Brasileira de Profissionais da Dublagem), critica a falta de regulamentação no meio e os esforços de empresas, em sua maioria estrangeiras, para implementar a dublagem por IA.
— Temos esperança numa regulamentação que obrigue a dublagem brasileira a acontecer no Brasil com atores brasileiros, uma vez que a dublagem nacional é uma manifestação cultural nossa — defende Azevedo. — Recebemos uma quantidade absurda de denúncias de colegas dubladores sendo abordados por empresas querendo comprar a voz deles para alimentar programas de IA. Sugerimos a eles que não fizessem isso porque iria causar um estrago muito grande.
Autores de roteiros também estão entre os profissionais que mais criticam as ferramentas de IA. O diretor e roteirista Igor Verde, conhecido pelos trabalhos nas séries “Reencarne” e “Os quatro da Candelária”, revela que ferramentas de IA, como ChatGPT e Gemini, já são usadas por roteiristas para algumas funções como resumos de texto ou produção de argumento a partir de premissas, mas que o uso da inteligência artificial na escrita tende a gastar mais tempo do que eventualmente ganhar.
— A escrita ainda está no rol das tarefas em que a IA aumenta o tempo em vez de diminuir. Ela deixa o processo mais lento por causa do tempo que se perde nos ajustes. A IA não dá conta de fazer textos longos e consistentes, e não substitui a capacidade de inteligência, leitura de mundo e sensorialidade do roteirista — acredita Verde.
A verdade é que ainda existe muita incerteza acerca do uso da IA no campo do audiovisual, até porque são infinitas as possibilidades de aplicação. Além do comprometimento de visões artísticas, um dos principais receios diante do avanço tecnológico é a perda de postos de trabalho. Eline Van der Velden, porém, não acredita nisso.
— Entendo totalmente o medo. O motivo de ter começado a trabalhar com IA foi justamente esse medo. Pensei: “bom, é melhor eu entender isso, se isso vai acabar tirando o meu emprego”. E então percebi que, na verdade, é bastante difícil substituir os humanos. Você ainda precisa contar uma história de verdade. A IA não faz nada sem os humanos — aponta a produtora. — À medida que comecei a trabalhar cada vez mais nesse campo, percebi que estamos contratando cada vez mais pessoas.
Van der Velden lembra que começou a usar o ChatGPT para resumir episódios de séries de sua companhia, a Particle 6. Há três anos, apelidou a ferramenta de “estagiário ruim”, pois errava muito e não dava conta de pedidos mais elaborados. Hoje, com ferramentas de IA generativa de vídeo, consegue fazer cenas com efeitos especiais que antes seriam bem caras.
— Dá para contar histórias incríveis a partir de um laptop. É uma ferramenta nova. Você não precisa de um orçamento de US$ 130 milhões para contar uma grande história — diz.

