TCU libera retomada de contrato de 1,4 bi da Casa da Moeda em que empresa admitiu propina

TCU libera retomada de contrato de 1,4 bi da Casa da Moeda em que empresa admitiu propina

O Tribunal de Contas da União (TCU) autorizou nesta quarta-feira (14) a Casa da Moeda do Brasil a retomar a operação do Sistema de Controle da Produção de Bebidas (Sicobe) através de um contrato bilionário suspenso há quase oito anos em que a empresa suíça Sicpa, responsável pelo serviço, admitiu o pagamento de propinas a agentes públicos em um acordo de leniência firmado com a Controladoria-Geral da União (CGU).

O processo no TCU foi iniciado em 2019, quando uma denúncia anônima que chegou à corte de contas apontou a suposta ilegalidade da suspensão do sistema de fiscalização pela Receita Federal. O argumento vinha sendo utilizado publicamente há anos pela Casa da Moeda, que também alega prejuízos milionários à empresa.

Em outubro passado, o TCU aprovou o restabelecimento do Sicobe. Mas a Receita não concordou e recorreu, via Advocacia-Geral da União (AGU), e a decisão anterior foi suspensa até a deliberação em plenário nesta quarta-feira, definida por um placar 5 a 3 contra a AGU.

Prevaleceu a posição do relator, Vital do Rêgo, que julgou ilegal o desligamento do Sicobe pela Receita Federal e apontou uma queda na arrecadação da União com o fim do sistema de fiscalização. Ele foi acompanhado pelos ministros Jhonatan de Jesus, Antonio Anastasia, Jorge Oliveira e Augusto Nardes.

Pela decisão da corte contábil, o Sicobe pode ser retomado a qualquer momento pela Casa da Moeda, o que, na prática, só pode ser feito através da Sicpa, que criou o sistema usado para a fiscalização e admitiu o pagamento de propina no mesmo contrato.

No acordo firmado com a CGU, a empresa estrangeira se comprometeu a devolver R$ 762 milhões aos cofres da estatal – uma parte já foi paga, mas a última parcela só vence em 2041. Em abril do ano passado, a Sicpa também foi condenada pela Procuradoria-Geral da Suíça a pagar 81 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 511 milhões, por atos de corrupção no Brasil, na Colômbia e na Venezuela.

O ministro revisor do processo, Benjamin Zymler, voto vencido, defendeu que o recurso da AGU fosse acolhido e que a palavra final sobre o futuro do Sicobe ficasse a cargo do Ministério da Fazenda.

Ele também defendeu que não havia segurança jurídica para chancelar a retomada do Sicobe, já que o contrato da Sicpa com a Casa da Moeda é investigado em outro processo do tribunal sob a relatoria de Aroldo Cedraz – situação que definiu como “espada de Dâmocles”. A posição foi similar à manifestação do Ministério Público junto ao TCU no processo.

Zymler divergiu ainda dos dados de arrecadação apresentados por Vital do Rêgo e citou um estudo do Inmetro que indicaria que o sistema não era imune a falsificações. O magistrado foi acompanhado pelos ministros Walton Alencar e Marcos Bemquerer Costa.

Em 2016, quando o serviço foi suspenso, o contrato tinha o custo anual de R$ 1,4 bilhão – R$ 2,4 bilhões em valores atuais. A Sicpa era responsável pelo controle e a marcação dos envases nas indústrias de bebidas, atribuição da Casa da Moeda que servia de complemento às atividades da Receita, além de prover o sistema do Sicobe.

‘Incompatibilidade’ com a reforma tributária

No recurso, a AGU citava não só os atos de corrupção confessados pela Sicpa no contrato do Sicobe como também a “inviabilidade técnica, econômica e jurídica” do sistema, além da “incompatibilidade” com a reforma tributária em tramitação no Congresso, lançando luz sobre o racha dentro do governo Lula sobre o futuro do sistema.

No organograma da União, a Receita é hoje uma secretaria especial dentro do Ministério da Fazenda de Fernando Haddad. O órgão alegava que o sistema da Casa da Moeda é antiquado e desatualizado e incompatível com as premissas do programa Rota Brasil, que foi anunciado em 2022 e tem entre suas metas ampliar a rastreabilidade de produtos como as bebidas com a participação dos consumidores, e a remodelação no sistema tributário.

A Casa da Moeda tenta reverter a suspensão do Sicobe alegando prejuízos milionários há anos, mas a articulação ganhou força desde o retorno do PT ao poder, em 2023.

Naquele ano, o ex-superintendente jurídico da Casa da Moeda, Márcio Luís Gonçalves Dias, que responde a processo na 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro por peculato e fraude à licitação nesse mesmo caso, voltou à estatal, desta vez como diretor de Operações.

De acordo com fontes ligadas à investigação do contrato do Sicobe e à Casa da Moeda, Dias elaborou um parecer jurídico favorável à contratação da Sicpa que, nas palavras de um deles, “se destacou muito mais pelas omissões do que pelas considerações elaboradas”. O documento, por exemplo, não comprovou a realização de uma pesquisa por outras empresas no mercado e nem a inexistência de tecnologia similar nacional.

A ata do comitê de elegibilidade da Casa da Moeda que analisou a indicação de Dias, datada de abril de 2023, registra que a instituição tomou conhecimento da denúncia contra ele pelo Ministério Público Federal por peculato apresentada no fim de 2022, mas ainda assim concluiu que o ex-superintendente cumpria “os requisitos necessários” para assumir a função de diretor.

Fontes ligadas à Casa da Moeda estimam que a retomada do sistema custará de 350 a 400 milhões de reais e afirmam que a pressão se deve a um lobby intenso da empresa suíça e do grupo político que hoje dá as cartas na estatal, ligado ao PT e ao deputado federal Lindbergh Farias (RJ).

A equipe do blog apurou que o CEO da empresa, Bruno Queiroga, também tem se movimentado em Brasília para viabilizar o restabelecimento do Sicobe. Queiroga é um dos empresários que integram o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o chamado Conselhão do Lula.

A despeito da colaboração com a CGU, a Sicpa manteve outros serviços junto à Casa da Moeda, como o sistema Scorpios, de fiscalização de cigarros, e o fornecimento de tintas especiais para mecanismos de segurança em cédulas – contratos que somam R$ 149,3 milhões, segundo o Portal da Transparência.

A leitura interna era de que a iniciativa de tentar retomar o contrato servia também para proteger esses outros contratos. A avaliação entre técnicos da Casa da Moeda ouvidos pela equipe da coluna, se o contrato para a fiscalização de bebidas fosse encerrado em definitivo, a estatal teria que cancelar esses outros contratos também.

O empenho dos dirigentes da estatal em retomar o contrato sob o comando da empresa vinha provocando grande apreensão entre servidores e ex-dirigentes, que preferem se manter sob reserva pelo temor de retaliações. O motivo, além da interferência política, é a retomada de um sistema considerado ineficiente e anacrônico com o passivo do histórico de corrupção da Sicpa.

Havia ainda a expectativa entre eles de que, na hipótese do restabelecimento do sistema, o TCU apresentasse uma resolução intermediária, como indicar a necessidade de contratação de uma nova empresa para operá-lo – o que foi frustrado pelo voto do relator, ministro Vital do Rêgo.

O imbróglio da Casa da Moeda permaneceu congelado sob o governo Jair Bolsonaro e só veio à tona depois que a Casa da Moeda entrou na partilha de cargos na gestão Lula. Na distribuição de cargos, integrantes do Sindicato dos Moedeiros ascenderam a postos de chefia. Além de Márcio Luís Gonçalves Dias (Operações), Leonardo Abdias assumiu a diretoria de Inovação. Ambos seriam indicações de Lindbergh.

Dias chegou a ser indicado pelo governo Lula para a presidência da estatal, mas a nomeação caiu após a revelação de que ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por peculato e fraude à licitação no âmbito da operação da PF que investigou justamente o contrato do Sicobe e a Sicpa. Dias era superintendente jurídico quando o negócio foi fechado

Ele acabou substituído por Sérgio Perini, funcionário de carreira indicado pelo deputado federal Lindbergh Farias para dirigir a estatal. Foi ele quem deu sinal verde para as indicações dos sindicalistas.

Em agosto de 2023, Lindbergh foi um dos únicos parlamentares a comparecer a uma audiência pública realizada pela Receita Federal para discutir o Rota Brasil. Na ocasião, o deputado defendeu o modelo do Sicobe.

Uma foto publicada nas redes oficiais da Casa da Moeda mostram o petista ao lado de autoridades da estatal como Leonardo Abdias, Márcio Luís Gonçalves Dias e o presidente, Sérgio Perini, além do secretário da Receita Federal, Robson Barreirinhas.

Questionada pela equipe do blog sobre as irregularidades confessadas pela companhia suíça no acordo de leniência e se cogita contratar outra empresa para administrar o Sicobe, a Casa da Moeda se limitou a dizer que “não faz parte do acordo de leniência firmado pela Sicpa” e que “não teve acesso ao processo, apenas é beneficiária do valor acordado entre as partes”.

A empresa pública não se manifestou sobre as críticas da Receita Federal ao sistema e os temores de que seu eventual restabelecimento prejudique a reforma tributária.

Procurada, a Sicpa contradisse o que subscreveu no próprio acordo de leniência firmado com a CGU. A empresa alega não ter confessado “qualquer ato de corrupção” e que, “em decorrência das decisões do Judiciário, o acordo poderá ser revisto”. À Controladoria-Geral da União, a companhia disse ter confirmado em apuração interna o pagamento de propinas entre 2009 e 2015 e se comprometeu a melhorar seu programa de integridade.

Ainda sobre o Sicobe, a empresa disse que o sistema é o maior programa de rastreabilidade do mundo e que o contrato com a Casa da Moeda já foi validado por “três instâncias do judiciário brasileiro (Justiça Federal, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), já com trânsito em julgado”.

O deputado Lindbergh Farias não retornou o contato da equipe da coluna. O espaço permanece aberto.

O maquinário responsável pela marcação das embalagens de bebidas, que é instalado na linha de produção das fabricantes, está abandonado há oito anos nas dependências da Casa da Moeda no distrito industrial de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, a um quilômetro da sede nacional da Sicpa, instalada do outro lado da via em que a estatal está situada.

Interlocutores da estatal avaliam que, uma vez retomado, o sistema exigirá uma adaptação das máquinas às novas tecnologias empregadas pela indústria e também a manutenção do equipamento, cujo estado é desconhecido.

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