Ex-ministro da Justiça e fiel aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro Flávio Dino tornou-se peça fundamental no Supremo Tribunal Federal (PT) para o governo retomar, ao menos em parte, o controle na liberação das emendas parlamentares – verbas bilionárias que deputados e senadores têm direito de direcionar no Orçamento da União. Tradicional moeda do Executivo para obter apoio no Legislativo, o manejo das emendas parlamentares tem, nos últimos anos, passado gradativamente para as mãos de lideranças no Congresso.
Com larga experiência política – além de ministro da Justiça, foi governador, deputado federal e senador –, Flávio Dino ganhou relevância no tema porque agora é o relator das várias ações que tramitam no STF que buscam, alegadamente, aumentar a transparência sobre a origem e o destino das emendas, obrigando o Congresso e o Executivo a informar publicamente os parlamentares que indicam, os municípios que recebem e a finalidade das verbas. Na prática, porém, as exigências podem servir de trava para a liberação dos recursos pelo governo ao Congresso, de modo a devolver à gestão petista maior controle sobre os pagamentos.
Nesta quarta-feira (14), ao analisar uma ação do PSOL sobre o tema, Dino suspendeu o pagamento das emendas parlamentares impositivas, de pagamento obrigatório pelo governo, que incluem as emendas pix (cuja verba é repassada diretamente para municípios, para ser usada a critério do prefeito, sem necessidade de vinculação a um programa federal); as individuais (indicadas por deputados e senadores, cada um com direito a um montante padrão), e as de bancada (verbas indicadas por parlamentares de um mesmo estado). Dino afirmou que a liberação só ocorrerá depois que o Congresso estabelecer regras mais claras de transparência para o pagamento dos recursos.
Um dos autores da ação do PSOL, o advogado Rafael Valim comemorou a decisão, destacando sua relevância para a “governabilidade”, isto é, a capacidade do governo aprovar matérias de seu interesse no Congresso. “A histórica decisão do Ministro Flávio Dino, ao suspender as emendas parlamentares impositivas, enfrenta o problema central do país e restaura a governabilidade prevista originalmente na Constituição de 1988”, postou o advogado no X.
Na semana passada, Dino já havia proferido outras duas decisões suspendendo o pagamento de emendas pix, para que tivessem mais transparência, principalmente em relação ao uso dos recursos pelos prefeitos. O ministro também exigiu do Congresso e do Executivo mais clareza sobre as emendas de comissão, nas quais não é possível saber quais deputados e senadores foram responsáveis pela indicação.
A publicidade dos dados, imposta pela Constituição, desagrada parlamentares, pois revela quais deles têm recebido mais verbas do que outros, o que tende a criar atritos dentro da base de apoio ao governo Lula, por insatisfação de quem recebeu menos.
A falta de clareza remonta ao governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), quando um dos tipos de emenda parlamentar – a de relator, controladas pelo deputado ou senador responsável pelo texto final do lei orçamentária – foi turbinado.
Em regra, a emenda de relator tinha por objetivo reservar valores pequenos que poderiam ser realocados no Orçamento para corrigir erros de cálculo nas despesas previstas. Passou, no entanto, a receber dezenas de bilhões de reais – R$ 53 bi entre 2020 e 2022 – e a funcionar como um caixa onde parlamentares influentes no Congresso tinham parcelas variáveis e bem maiores que seus colegas do baixo clero, para direcionar para suas bases eleitorais. Como a divisão do montante não era pública – justamente para privilegiar parlamentares com mais força política – e não se sabia quem indicava e para onde exatamente iam as verbas, seu apelido virou “Orçamento secreto”.
Em 2022, o STF vetou esse modo de operar as emendas de relator e exigiu do Congresso informações públicas sobre os parlamentares que indicavam as verbas e para onde eram direcionadas. Câmara e Senado, no entanto, acabaram driblando a decisão, e passaram a injetar recursos volumosos do Orçamento em outro tipo de emenda, a de comissão, comandada pelos presidentes das comissões temáticas das Casas. Neste ano, elas somam R$ 15,2 bilhões.
Assim como nas emendas de relator, elas passaram a ser usadas para privilegiar os deputados e senadores mais poderosos. Lideranças dos partidos mais fortes do Congresso, como o PP, do presidente da Câmara, Arthur Lira, dividem a verba entre os deputados e o presidente da comissão envia diretamente ao ministério envolvido os pedidos de recursos para os municípios a serem contemplados.
As negociações ocorrem sem participação efetiva da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência (pasta que concentra as negociações políticas do governo junto ao Congresso e responsável por obter votos para aprovação das propostas do governo) e da Casa Civil (centro de comando da implementação e execução das políticas públicas do Executivo), o governo acaba escanteado no processo, e assim, com pouca margem para negociar apoio no Congresso.
Dino é o relator das ações que tratam das emendas porque herdou o papel de sua antecessora no STF, Rosa Weber, que se aposentou. Foi ela quem primeiro impôs transparência para as emendas de relator. Ao assumir sua cadeira, Dino virou relator de uma ação do PSOL contra a falta de transparência na indicação desses recursos no Orçamento.
Em junho deste ano, Dino constatou que a decisão do STF para dar ampla publicidade sobre o direcionamento dessas verbas não estava sendo cumprida. No início de agosto, numa audiência de conciliação, o Congresso informou que não tinha como listar os parlamentares que indicaram a alocação das emendas de comissão. No último dia 8, Dino determinou que o Executivo forneça os ofícios que as comissões de Câmara e Senado enviam aos ministérios para direcionar as verbas.
Ao mesmo tempo, Dino virou relator de duas novas ações que tratam de outro tipo de emenda parlamentar, a “emenda pix”, na qual a verba direcionada ao município sequer precisa estar vinculada a determinado programa do governo federal. Fica a cargo do prefeito beneficiário aplicar o recurso onde entender mais apropriado, o que dificulta ainda mais a fiscalização. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentaram ações semelhantes para acabar com esse tipo de emenda parlamentar.
Dino foi designado relator por prevenção, regra do STF que direciona a um mesmo ministro ações com objetos semelhantes. A opção por Dino partiu do presidente do STF, Luís Roberto Barroso. “A distribuição se deu por prevenção, nos termos da decisão da presidência desta Corte, tendo em vista que a matéria objeto desta ADI guarda pertinência temática com as questões discutidas na ADPF nº. 854, de minha relatoria, vez que as ‘emendas pix’, em tese, configurariam uma espécie de ‘orçamento secreto’”, registrou Dino na ação da Abraji.
No dia 1º, ao analisar a ação da entidade, Dino condicionou a liberação desses recursos, pelo Executivo, à inserção, pelos parlamentares, numa plataforma pública (Transferegov.br), de informações sobre plano de trabalho, estimativa de recursos, prazo da execução, bem como a classificação orçamentária da despesa. As verbas também só podem ser direcionadas para os estados de origem dos deputados e senadores que as indicam.
No último dia 8, ao analisar a ação da PGR, Dino reafirmou as determinações, mas abriu uma exceção: autorizou, excepcionalmente, a continuidade dos pagamentos de emendas pix para obras em andamento (desde que haja transparência, rastreabilidade e plano de trabalho para aplicação do recurso) e de calamidade pública devidamente reconhecida pela Defesa Civil.
Congresso apresenta reação a Dino
O Congresso já apresentou reação às determinações de Dino. A Câmara dos Deputados, o Senado e partidos políticos protocolaram, nesta quinta-feira (15), um pedido conjunto à presidência do STF para suspender as liminares dadas nas decisões monocráticas do ministro sobre as emendas.
Em um trecho do recurso, o Congresso afirmou que as determinações de Dino “revelam flagrante violação ao devido processo legal, ensejam enorme insegurança jurídica, além de representarem interferência drástica e indevida nas decisões políticas dos poderes Executivo e Legislativo, a representar, agora sim, violação ao princípio da separação de Poderes”.
Outras ideias ainda estão em discussão no Parlamento, tais como: elevar o valor das emendas individuais, que são de pagamento obrigatório pelo governo; estabelecer cronograma fixo de pagamento pelo Executivo, o que acaba com a possibilidade de trocar a liberação por votos antes de votações importantes; e a criação de emendas de líder ou de partido, de modo que as maiores legendas tenham direito a mais verbas. Em maior ou menor grau, são propostas que retiram ainda mais do Executivo o controle dos recursos.
Parte dos parlamentares desconfia que Dino trabalha em favor do governo na questão. O ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, negou que tenha atuado para Dino barrar as emendas pix. Dino agora se tornou também relator de uma nova ação, do PSOL, que pretende acabar com as emendas impositivas, de pagamento obrigatório pelo governo. Na decisão que suspendeu as emendas pix, Dino fez considerações sobre as emendas impositivas. Escreveu que elas tornam o parlamentar um “ordenador de despesas”, função típica do Executivo. Sua manutenção, segundo o ministro, impões deveres de responsabilidade sobre a aplicação de recursos.
“Ora, se é o parlamentar que IMPÕE em que o dinheiro será gasto, exige-se, caso mantido o instituto na Constituição, inovações simétricas nos sistemas de controle, a fim de que a Constituição seja cumprida, tal como menciona a PGR na presente ADI. Se assim não ocorrer, teremos um perigoso e inconstitucional ‘jogo de empurra’, em que, ao certo, ninguém se identifica como responsável pela aplicação de parcela relevante do dinheiro público”, escreveu.
“Nesse atípico ‘jogo’, o parlamentar pode argumentar que apenas indica, mas não executa; o Executivo pode informar que está apenas operacionalizando uma ‘emenda impositiva’; e o gestor estadual ou municipal pode alegar ser mero destinatário de algo que vem ‘carimbado’. Em casos de não aderência ao Plano Plurianual, da falta de economicidade ou de improbidade administrativa, quem responderá por isso? Nesse contexto, compreendo que somente o reforço da transparência e da rastreabilidade pode resolver essa problemática, inclusive à vista desse novo tipo de função parlamentar: a de ‘ordenador de despesas’”, continuou.
Nas decisões, o ministro determinou uma auditoria nos pagamentos já realizados, de modo que a Controladoria-Geral da União (CGU), órgão de fiscalização do Executivo, e o Tribunal de Contas da União (TCU), que fiscaliza em nome do Legislativo, trabalhem no detalhamento de todos os repasses de emendas para os municípios.
Nas próximas semanas, os demais ministros do STF poderão manifestar apoio, discordância ou propor ajustes nas exigências de Dino por maior transparência na aplicação das emendas parlamentares. Na sexta (16), será iniciado julgamento virtual no qual, durante uma semana, os ministros poderão referendar ou rejeitar a decisão de Dino sobre as emendas pix. O mais provável é que a maioria apoie suas determinações, o que consolidará seu papel como mediador entre Congresso e Palácio do Planalto na gestão das emendas.
Para fundador das Contas Abertas, Congresso vai driblar nova exigência do STF
Para Gil Castello Branco, fundador da ONG Contas Abertas, que monitora a aplicação de recursos públicos, a auditoria determinada por Dino mostrará o mau uso dos recursos.
“A auditoria determinada pelo ministro do STF Flávio Dino irá constatar o mesmo que diversos estudos já mostraram. Os recursos públicos, provenientes das emendas parlamentares, em grande parte, estão sendo distribuídos politicamente, sem transparência e rastreabilidade, com base em interesses pessoais e partidários, privilegiando uns em detrimento de outros, sem critérios técnicos e parâmetros sócio econômicos, distorcendo as políticas públicas, em um claro desvio do princípio federativo”, diz Castello Branco.
Ele, no entanto, tem dúvidas sobre a retomada do protagonismo do Executivo no controle da liberação das emendas.
“O crescimento exponencial dos valores das emendas parlamentares – com parte delas passando a ter execução obrigatória – comprimiu, na mesma proporção, os recursos discricionários alocados pelo Executivo. As emendas parlamentares constituem, há muitos anos, há vários governos, um instrumento promíscuo de barganha entre o Legislativo e o Executivo. O Legislativo quer sempre ‘a chave do cofre’ e o Executivo, para compor a base parlamentar, negocia a chave. Historicamente, os parlamentares que apoiam o governo conseguem algum tipo de privilégio”, diz o economista.
Para ele, como ocorreu em outras oportunidades, o Congresso encontrará novas formas de driblar as recentes exigências do STF.
“Agora, diante das decisões do ministro Dino, o Congresso terá de fazer mudanças para, no fim, tudo continuar como está. Já estão sendo cogitadas outros modelos de emendas. Na prática, tal como sempre aconteceu, os parlamentares que apoiam o governo continuarão a ter um bônus”, afirma.