A Advocacia-Geral da União (AGU) solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que antecipe os efeitos do voto do ministro Dias Toffoli no julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, estendendo às plataformas digitais a obrigação de remover, de forma proativa, conteúdos “ilícitos” gerados por inteligência artificial (IA). Pior: requereu que essa obrigação seja incluída na tese de repercussão geral – ou seja, com força vinculante para todo o Judiciário. Trata-se de um movimento preocupante, que reveste de legalidade uma tentativa explícita de controle político da crítica e da sátira nas redes sociais.
O argumento central da AGU é revelador. Em seu pedido, o órgão afirma que o uso indevido da IA representa “risco para ações e programas governamentais”, “ofensa à honra e à imagem de figuras públicas” e “impacto negativo para a reputação e para a confiança dos administrados em relação à administração pública”.
A preocupação, portanto, não é com a segurança jurídica nem com a integridade do debate público, mas com a imagem do governo.
Não é difícil entender o pano de fundo da manobra. Vídeos satíricos produzidos com IA, como aqueles que retratam o ministro da Fazenda como “Taxad” ou a primeira-dama em chave caricatural, viralizaram e revelaram incômodos profundos do poder central com sua representação pública. O recurso à Corte constitucional visa a blindar essas figuras de qualquer constrangimento, ainda que isso custe um valor inegociável numa democracia: a liberdade de expressão.
É verdade que o avanço da IA impõe novos desafios regulatórios, mas o risco maior é adotar soluções desproporcionais. O que propõe a AGU – e o que já se antevê no voto de Toffoli – é a imposição de responsabilidade objetiva às plataformas, acompanhada do dever de monitoramento preventivo, inclusive para conteúdos satíricos ou paródicos.
Esse modelo, além de inconstitucional, fere parâmetros consagrados no Direito comparado e abre precedente perigoso para o silenciamento automatizado do dissenso político.
Em vez de exigir a remoção de conteúdos mediante ordem judicial específica – como prevê o artigo 19 do Marco Civil –, a tese em discussão permitiria que autoridades e agentes públicos fossem blindados contra qualquer crítica incisiva, especialmente quando viralizada por meios automatizados. Sob a alegação de “enfrentar desinformação” ou “proteger a honra”, cria-se uma via institucional para a censura prévia, expressamente vedada pela Constituição.
O Brasil não pode ceder à tentação autoritária de regulamentar o debate público por atalho judicial. A crítica, o humor e a sátira são instrumentos legítimos e valiosos na formação da consciência política da cidadania. É natural que governantes se sintam desconfortáveis com caricaturas – sobretudo em períodos eleitorais. Mas não cabe ao Estado limitar o que pode ou não ser dito sob o manto da tecnocracia jurídica. Governos passam; a liberdade, não.
A Suprema Corte deve resistir ao apelo do momento e reafirmar seu compromisso com os princípios constitucionais. A construção de uma regulação democrática exige transparência, participação pública e respeito às garantias fundamentais. A judicialização da opinião alheia, sobretudo quando automatizada por algoritmos de remoção preventiva, não é o caminho. É um atalho perigoso e lamentavelmente conhecido.
Vale observar que experiências internacionais demonstram os riscos de atribuir às plataformas funções de polícia ideológica. O modelo alemão (NetzDG), por exemplo, é frequentemente citado como justificativa para normas semelhantes.
No entanto, análises independentes mostram que ele gerou remoções em massa, com impactos negativos sobre conteúdos lícitos, inclusive de jornalistas e opositores. A pressão legal fez com que as empresas adotassem uma lógica de “remover primeiro, avaliar depois”, gerando um ambiente de autocensura e limitação do debate democrático.
Mais grave ainda é quando esse processo se dá sem o devido controle institucional, por meio de decisões judiciais genéricas. Ao criar uma jurisprudência ampla que autoriza remoções preventivas, abandona-se o filtro essencial da proporcionalidade e da contextualização de cada caso concreto. O resultado é um ecossistema digital cada vez mais filtrado por critérios arbitrários e por medo de responsabilização – um verdadeiro congelamento da crítica política.
A defesa da honra das autoridades não pode ser usada como escudo contra o escrutínio público. A inteligência artificial, com todo o seu potencial disruptivo, não pode ser bode expiatório para justificar uma escalada regulatória que começa pelos memes, mas termina por redefinir os limites da cidadania. E, se há riscos com o uso indevido da IA, que se promovam campanhas de educação digital, que se fortaleçam os canais de denúncia, que se qualifique o Judiciário para julgamentos ágeis e individualizados.
A liberdade de expressão – com seus excessos, ruídos e arestas – é condição de existência de uma democracia viva. O que está em jogo não é apenas uma lei, mas a forma como entendemos o papel da crítica e da tecnologia na sociedade. Regular é necessário; censurar, inaceitável.