No âmbito internacional, o multilateralismo surge com o pretexto de equilibrar as assimetrias existentes entre os países, viabilizando pactos internacionais (supostamente) mais sustentáveis para um (pretenso) bem comum global.
Dentre os pactos dessa natureza, cita-se o Acordo TRIPs, fruto de um intenso lobby dos Estados Unidos, com apoio da União Europeia, que estabelece rigoroso regramento jurídico atinente aos ativos de Propriedade Intelectual no âmbito do comércio internacional.
Em apertada síntese, naquele documento são disciplinados padrões mínimos de proteção a serem observados pelos países signatários, relativos à Propriedade Intelectual (direito autoral, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, circuitos integrados e informação confidencial).
De fato, a chancela jurídica que recai sobre a Propriedade Intelectual concede, dentre outros, direitos de exclusividade aos titulares de tais bens intangíveis. Na dinâmica de mercado (principalmente global), essa exclusividade enseja a “escassez” e “raridade” desses ativos e, consequentemente, a valorização dos referidos bens intelectuais, notadamente quando comparados com as “commodities” (produtos básicos não industrializados).
O valor de tais “commodities”, por sua vez, é balizado pela “oferta e procura internacional”, relegando-as à premissa do “menor preço”, já que não possuem os atributos da exclusividade, escassez ou raridade próprios dos ativos de Propriedade Intelectual.
Os países do Norte Global, cujos agentes econômicos são maiores titulares de Direitos de Propriedade Intelectual (principalmente de natureza industrial), beneficiam-se enormemente da tutela internacional conferida pelo Acordo TRIPs, que ratifica o alto valor conferido aos seus bens intangíveis no comércio internacional.
Por outro lado, países do Sul Global, que não possuem a mesma expressão no âmbito da Propriedade Intelectual, acabam por concentrar suas transações internacionais em “commodities”. Consequentemente, a balança comercial tende a ser superavitária para os países do Norte Global em suas relações comerciais com os países do Sul Global.
Não obstante, mesmo em países ancorados em “commodities” no comércio internacional (como o Brasil), observamos ativos de Propriedade Intelectual de valiosa expressão cultural e econômica, quais sejam, as criações artísticas, tuteladas pelos Direitos Autorais.
Tais bens intangíveis, que também “pesam” sobre a balança comercial, encontram-se ameaçados pela dita Inteligência Artificial generativa. Dentre várias façanhas, essa tecnologia “gera” (e não “cria”) obras artísticas novas por meio da reordenação de um imenso banco de dados (Big Data), constituído por criações protegidas por Direitos Autorais.
Cite-se como exemplo o acervo musical valiosíssimo de Hermeto Pascoal. Digamos que alguém, na Alemanha, digite o seguinte prompt para uma IA generativa: “Apresente uma música na estética de forró, com influência de Hermeto Pascoal”. Sem dúvida, para gerar o output solicitado, o software terá que coletar tanto referências ao que seria “forró” quanto o próprio catálogo de Hermeto Pascoal, para chegar ao seu perfil estético.
Nesse fragmento de segundo, uma série de obras artísticas protegidas por Direitos Autorais está sendo violada e utilizada sem o conhecimento e/ou anuência dos criadores.
Naquele exemplo, algo que só poderia ser “criado” genuinamente na região Nordeste do Brasil passa a ser “gerado” em qualquer local do mundo, reduzindo seu valor econômico e provocando a sua “commoditização”, uma vez que não é mais único, exclusivo, escasso ou raro.
Por um lado, as empresas de Inteligência Artificial alegam ser impossível filtrar cada fragmento das obras utilizadas no processo de mineração de dados que ensejou o output, em virtude da imensidão do Big Data. Por essa razão, seria (supostamente) inviável identificar os autores para eventual autorização e/ou remuneração.
Por outro lado, apesar do tamanho extraordinário, aquele banco de dados não é infinito, e só existe exatamente por conta do acervo intelectual que o subsidia. Isto é, sem as obras artísticas humanas, inexistem as obras artísticas da máquina.
É, no mínimo, curioso que as ditas Big Techs, empresas calcadas em modelos de negócio baseados em tecnologia, aleguem a própria “falta de tecnologia” para identificar as obras utilizadas no processo de mineração de dados, inviabilizando o respeito aos direitos morais e patrimoniais dos autores e/ou titulares.
Permanecendo sem a adequada regulamentação, testemunharemos o fenômeno da “commoditização” das criações artísticas, com todas as suas consequências perniciosas, como a desvalorização econômica do que não é mais “único”, “exclusivo”, “escasso” ou “raro”, além da pasteurização da produção artística, aniquilando a rica diversidade cultural mundial.
Artur Paiva é advogado, pesquisador, professor universitário, pianista, compositor e produtor musical, mestre em Direito Constitucional, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza, presidente da Comissão de Direitos Culturais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Ceará, Subseção Sobral. Autor do livro “Patrimônio Cultural Imaterial: guerra entre Poderes e desproteção”. Sócio-fundador do escritório Paiva & Osterno — Advocacia.
A commoditização das criações artísticas pela Inteligência Artificial tem sido um tema cada vez mais relevante nos dias de hoje. Como servidor público há mais de 16 anos, percebo que a tecnologia está revolucionando a forma como produzimos e consumimos arte.
A Inteligência Artificial tem o potencial de democratizar o acesso à arte, tornando-a mais acessível e diversificada para um público mais amplo. No entanto, também levanta questões éticas sobre a originalidade e autenticidade das criações artísticas geradas por máquinas.
É importante refletirmos sobre como podemos utilizar a Inteligência Artificial de forma ética e responsável, garantindo que as criações artísticas continuem a refletir a diversidade e complexidade da experiência humana.
A integração da tecnologia com a arte pode trazer benefícios significativos para a sociedade, permitindo novas formas de expressão e colaboração. Cabe a cada um de nós explorar as possibilidades oferecidas pela Inteligência Artificial e considerar como podemos utilizá-la para enriquecer nossas vidas e melhorar nossa sociedade. Afinal, qual será o impacto dessa tendência na forma como criamos e apreciamos arte? A resposta é sua para decidir.




