Opinião
No âmbito internacional, o multilateralismo surge com o pretexto de equilibrar as assimetrias existentes entre os países, viabilizando pactos internacionais (supostamente) mais sustentáveis para um (pretenso) bem comum global.
Marcello Casal Jr./ABr

Dentre os pactos dessa natureza, cita-se o Acordo Trips, fruto de um intenso lobby dos Estados Unidos com apoio da União Europeia, que estabelece rigoroso regramento jurídico atinente aos ativos de propriedade intelectual, no âmbito do comércio internacional.
Em apertada síntese, naquele documento são disciplinados padrões mínimos de proteção, a serem observados pelos países signatários, relativos à propriedade intelectual (direito autoral, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, circuitos integrados e informação confidencial).
De fato, a chancela jurídica que recai sobre a propriedade intelectual concede, dentre outros, direitos de exclusividade aos titulares de tais bens intangíveis. Na dinâmica de mercado (principalmente global), essa exclusividade enseja a “escassez” e “raridade” desses ativos e, consequentemente, a valorização dos referidos bens intelectuais, notadamente quando comparados com as “commodities” (produtos básicos não industrializados).
O valor de tais “commodities”, por sua vez, é balizado pela “oferta e procura internacional”, relegando-as à premissa do “menor preço”, já que não possuem os atributos da exclusividade, escassez ou raridade, próprios dos ativos de propriedade intelectual.
Os países do Norte Global, cujos agentes econômicos são maiores titulares de direitos de propriedade intelectual (principalmente de natureza Industrial), beneficiam-se enormemente da tutela internacional conferida pelo Acordo Tripss, que ratifica o alto valor conferido aos seus bens intangíveis no comércio internacional.
Por outro lado, países do Sul Global, que não possuem a mesma expressão no âmbito da propriedade intelectual, acabam por concentrar suas transações internacionais em “commodities”. Consequentemente, a balança comercial tende a ser superavitária para os países do Norte Global em suas relações comerciais com os países do Sul Global.
Não obstante, mesmo em países ancorados em “commodities” no comércio internacional (como o Brasil), observamos ativos de propriedade intelectual de valiosa expressão cultural e econômica, quais sejam, as criações artísticas, tuteladas pelos direitos autorais.
IA generativa
Tais bens intangíveis, que também “pesam” sobre a balança comercial, encontram-se ameaçados pela dita inteligência artificial generativa. Dentre várias façanhas, essa tecnologia “gera” (e não “cria”) obras artísticas novas, por meio da reordenação de um imenso banco de dados (big data), constituído por criações protegidas por direitos autorais.
Cite-se como exemplo o acervo musical valiosíssimo de Hermeto Pascoal. Digamos que alguém na Alemanha digite o seguinte prompt para uma IA generativa: “apresente uma música na estética de forró, com influência de Hermeto Pascoal”. Sem dúvida, para gerar o output solicitado, o software terá que coletar tanto referências ao que seria “forró”, além do próprio catálogo de Hermeto, para chegar ao seu perfil estético.
Nesse fragmento de segundo, uma série de obras artísticas protegidas por direitos autorais está sendo violada e utilizada sem o conhecimento e/ou anuência dos criadores.
Naquele exemplo, algo que só poderia ser “criado” genuinamente na região Nordeste do Brasil, passa a ser “gerado” em qualquer local do mundo, reduzindo seu valor econômico e provocando a sua “commoditização”, uma vez que não é mais único, exclusivo, escasso ou raro.
Por um lado, as empresas de inteligência artificial alegam ser impossível filtrar cada fragmento das obras utilizadas no processo de mineração de dados que ensejou o output, em virtude da imensidão do big data. Por essa razão, seria (supostamente) inviável identificar os autores para eventual autorização e/ou remuneração.
Por outro lado, apesar do tamanho extraordinário, aquele banco de dados não é infinito, e só existe exatamente por conta do acervo intelectual que o subsidia. Isto é, sem as obras artísticas humanas, inexistem as obras artísticas da máquina.
É, no mínimo, curioso que as ditas big techs, empresas calcadas em modelos de negócio baseados em tecnologia, aleguem a própria “falta de tecnologia” para identificar as obras utilizadas no processo de mineração de dados, inviabilizando o respeito aos direitos morais e patrimoniais dos autores e/ou titulares.
Permanecendo sem a adequada regulamentação, testemunharemos o fenômeno da “commoditização” das criações artísticas, com todas as suas consequências perniciosas, como a desvalorização econômica do que não é mais “único”, “exclusivo”, “escasso” ou “raro”, além da pasteurização da produção artística, aniquilando a rica diversidade cultural mundial.
A utilização da inteligência artificial vem se tornando cada vez mais comum na criação de obras artísticas, como músicas, pinturas e até mesmo roteiros de filmes. Essa tecnologia promete revolucionar a forma como interagimos com a arte, oferecendo novas possibilidades e expandindo os horizontes criativos.
Como servidor público há mais de 16 anos, vejo com bons olhos os avanços da inteligência artificial no campo artístico. Acredito que essa tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para impulsionar a criatividade e inovação, além de tornar a arte mais acessível e democrática para um público mais amplo.
No entanto, é importante refletirmos sobre os impactos da commoditização das criações artísticas pela inteligência artificial. Será que estamos valorizando adequadamente o trabalho dos artistas humanos? Como garantir que a arte produzida por meio da inteligência artificial não perca sua autenticidade e originalidade?
É fundamental que busquemos um equilíbrio entre a tecnologia e a expressão humana na arte. Devemos explorar as possibilidades da inteligência artificial sem perder de vista a importância da criatividade e sensibilidade humanas. Afinal, a verdadeira beleza da arte está na emoção e na interpretação única que só os seres humanos podem proporcionar.
Portanto, cabe a nós, enquanto sociedade, refletir sobre como podemos utilizar a inteligência artificial de forma ética e responsável para enriquecer nossa experiência artística e melhorar nossa qualidade de vida. Afinal, a arte é uma das maiores formas de expressão humana e deve ser valorizada e preservada, independentemente das inovações tecnológicas que surgem ao nosso redor.

