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A inteligência artificial e a (des)humanização na saúde | Opinião

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Antes de ser atendido por um médico, passar pela triagem de um chatbot do serviço de saúde. Em vez de ir presencialmente a um psicólogo, fazer terapia por meio de um aplicativo no celular. Receber um diagnóstico antecipado de uma doença graças à análise rápida dos seus últimos exames pela inteligência artificial (IA). Essas já são realidades do nosso dia a dia.

A IA avança rapidamente e é um dos temas mais quentes no setor da saúde. Cientistas, médicos e pacientes compartilham o desejo de vê-la crescer, e as expectativas indicam que a tecnologia poderá auxiliar cada vez mais o trabalho dos profissionais e salvar milhões de vidas ao redor do mundo.

No entanto, é fundamental refletir sobre a humanização do atendimento em saúde, que ainda “engatinha” na formação de novos médicos e no dia a dia de hospitais, prontos-socorros e consultórios. Será que a IA vai contribuir para a desumanização do cuidado? Existem diretrizes sólidas para regular a aplicação de novas tecnologias, garantindo processos mais ágeis sem esquecer que seres humanos precisam de um tratamento humanizado?

O toque, o olho no olho e, principalmente, a escuta atenta da dor e do relato do paciente, numa relação face a face, já permitiram prever doenças graves e tratá-las antes que piorassem — algo que, muitas vezes, uma máquina não seria capaz de realizar.

O médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis, uma das maiores autoridades mundiais em neurociência, costuma dizer que a inteligência artificial “não é nem inteligente, nem artificial”. Para ele, o uso excessivo e indiscriminado da IA pode levar o ser humano a abandonar capacidades cognitivas essenciais, prejudicando nossa própria evolução.

Guarde essa informação e vamos observar como anda o uso da IA na saúde pelo mundo, especialmente na etapa do primeiro atendimento.

O NHS, Serviço Nacional de Saúde britânico, é referência global no uso de IA para triagem digital. Ferramentas como o Babylon Health e o chatbot Ask NHS coletam sintomas relatados pelos pacientes via aplicativo, analisam os dados com base em milhões de registros médicos — inclusive fazendo comparações — e sugerem o nível de urgência e o tipo de atendimento necessário (emergência, consulta ou homecare).

Essa realidade já está presente em vários países europeus, ajudando a desafogar filas em pronto-socorros, orientar pacientes com segurança e reduzir erros humanos. Nos Estados Unidos, a renomada Cleveland Clinic realiza triagens presenciais e digitais com IA: sintomas, sinais vitais e histórico clínico são coletados e analisados em segundos, permitindo classificar a gravidade do caso e otimizar o tempo de atendimento. As informações são integradas a prontuários eletrônicos, agilizando o trabalho e melhorando a experiência de médicos e pacientes.

Portugal e Brasil também já utilizam sistemas semelhantes, especialmente após a pandemia de Covid-19, quando chatbots e telemedicina se popularizaram.

Em Singapura, o Changi General Hospital adota o sistema e-Triage, em que algoritmos de IA calculam o risco clínico já na entrada do paciente no hospital, gerando alertas automáticos para casos críticos como possibilidade de queda, AVC ou insuficiência respiratória.

Na França, hospitais públicos utilizam o sistema Lifen, que analisa os sintomas informados pelo paciente, resume os dados e envia ao médico antes da consulta.

Estamos avançando, certo? Mas como tudo ainda é muito novo, cabe perguntar: como estão as diretrizes para regular o uso da IA na saúde, considerando questões éticas, legais e de segurança clínica?

Ser humano

Essas diretrizes vêm sendo elaboradas por organizações internacionais, governos, conselhos médicos e instituições acadêmicas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou, em 2021, o guia Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health, recomendando, entre outros pontos, a inclusão e a equidade nos atendimentos. A União Europeia, por meio do AI Act, classifica sistemas de IA na saúde como de “alto risco”, exigindo supervisão humana, transparência nos critérios de decisão e rastreabilidade dos dados utilizados.

No Brasil, ainda não há protocolo específico para IA em triagens hospitalares, mas já existem boas práticas. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/CNS) analisa projetos de IA clínica, e o Ministério da Saúde tem prioridade na “Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial”, lançada em 2021.

No setor privado, hospitais como o Albert Einstein aplicam diretrizes internas de validação e auditoria. Além disso, o projeto de lei nº 2338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), busca regulamentar o uso ético e responsável da IA, com foco na centralidade da pessoa humana.

E lembra daquela informação que pedi para você guardar? Nicolelis explica que a inteligência é uma propriedade orgânica da matéria humana, fruto de bilhões de anos de evolução, impossível de ser reproduzida em um simples código digital. E que, na prática, a IA depende totalmente do trabalho humano para alimentar suas bases de dados — muitas vezes com mão de obra explorada em condições precárias. Para ele, o termo “Inteligência Artificial” é uma estratégia de marketing baseada em uma comparação equivocada entre computadores e o cérebro humano.

Se a inteligência é algo orgânico e não pode ser decodificada digitalmente, o erro está em colocar tudo nas mãos da IA. Há quem faça terapia com chatbots quando deveria estar diante de um psicólogo. A missão da ciência e da tecnologia é melhorar a qualidade de vida, não nos desumanizar. Já é comum encontrar pessoas que não sabem mais escrever à mão porque se acostumaram apenas ao teclado. E habilidades que não são usadas, naturalmente, se perdem. Portanto, viva o avanço da IA, mas salve a capacidade do ser humano de ser humano.

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