A moeda única estatal, obrigatória para quitar dívidas, é gerida pelo Banco Central, mas multiplicada de forma descentralizada por empréstimos dos bancos comerciais. Magia virtuosa, o crédito permite investimento sem poupança prévia, a serviço da inovação, do investimento privado, e da geração de emprego. Embora intrinsecamente instável, se bem regulada, seria menos sujeita a crises.
Mas nada disso vem acontecendo. A evolução tecnológica, o aumento da desigualdade e as crises financeiras internacionais das últimas décadas colocaram em xeque a atual ordem monetária. Importante exemplo é a criação das criptomoedas privadas, especialmente o Bitcoin.
Mais que meio de pagamento e forma de especulação, o Bitcoin é um projeto político: uma moeda sem intermediários e sem Estado. No plano operacional, menos risco e mais transparência; no político, liberdade e privacidade. A criptografia permitiu a criação de criptomoedas globais privadas que blindariam o indivíduo contra as mazelas da moeda estatal: manipulações inflacionárias, crises sistêmicas, tecnocratas invasivos e perseguições políticas.
Mas, por enquanto, os resultados em nada lembram uma verdadeira moeda: volatilidade não combina com unidade de conta.
Os guardiães da ordem monetária vigente reagiram ao projeto subversivo com tecnologia semelhante para criar a moeda digital do banco central, a CBDC (Central Bank Digital Currency). Em sua versão mais completa, centraliza a multiplicação de moeda na autoridade monetária, tomando dos bancos seu papel mais importante.
Adeus a cédulas e moedas metálicas. Teríamos conta diretamente no Banco Central, sem intermediários. Toda a vida financeira estaria assim concentrada. Os benefícios sociais chegariam a seus destinatários com maior eficiência. A sonegação fiscal, a corrupção e o crime organizado seriam mais rastreáveis. O controle da inflação e a prevenção e gestão de crises seriam otimizados. A moeda seria programável, ou seja, o governo poderia, em determinada conjuntura econômica, condicionar o seu uso para o consumo de determinados bens, proibi-lo para outros fins considerados ilícitos ou moralmente indesejáveis, ou mesmo –pasme o leitor–, estipular um prazo de validade para uma parte da moeda depositada na conta do usuário.
O paradigma CBDC é diametralmente oposto ao da cripto. Em vez da concorrência entre moedas privadas, o reinado absoluto da moeda estatal. No lugar da liberdade e da privacidade máximas propiciadas pelos protocolos criptografados descentralizados, o monitoramento total da vida do indivíduo a partir de servidores situados no bunker da autoridade monetária.
Se, tecnicamente, ambos modelos já são viáveis, qual deveria ser a opção de uma sociedade democrática? A sugestão tecnocrática de upgrade digital da atual ordem monetária? Ou a discutível promessa libertária da militância cripto?
Na encruzilhada, muitas dúvidas jurídicas: como seguir um caminho sem plebiscito, emenda constitucional, ou pelo menos uma lei? No caso do CBDC completo, haveria um direito à preservação de cédulas e moedas metálicas, para garantia de privacidade? Quais remédios jurídicos, qual desenho institucional, e qual versão da separação dos poderes seriam necessários para defender o cidadão comum e as empresas contra a tentação estatal da programação da moeda e contra o uso indevido do seu banco de dados? Seria a redução substancial da função dos bancos comerciais pelo CBDC compatível com o princípio constitucional da livre iniciativa?

