Afinal, do que falamos quando falamos de competência?

Assisti ao filme Clube de Compras Dallas ainda estudante de Direito. Ficou comigo a cena em que se indefere o pedido do personagem principal para que o Judiciário imponha ao Food and Drug Administration (FDA) [1] o dever de fornecimento de medicamento para a Aids. O juiz menciona sua simpatia com o pedido, porém destaca lhe faltar autoridade [legal authority] [2].

Dallas Buyers Club

Fascina a linguagem utilizada pelo juiz. Não há impossibilidade de apreciação do tema. Faltava ao juiz especificamente capacidade, decorrente de determinada autoridade que a lei lhe designaria, para determinar aquele resultado pretendido pelo personagem. O juiz declara apenas estranhar a resistência contra o medicamento, o que se mostra decisivo depois para que a agência decida por aprová-lo.

A discussão sobre a forma de institucionalização do consenso na administração pública fez vir à memória essa cena. Sabemos que administrativista gosta de pensar na chave das competências legais [3]. Novamente, a linguagem. Muitos textos foram escritos sobre a competência do TCU (Tribunal de Contas da União) em procedimentos de consenso em órgãos da administração.

Perspectivas sobre o tema

Mas o que se quer dizer por competência aqui?

Uma perspectiva é a do objeto. Aqui, a crítica tem como viés a delimitação da jurisdição do tribunal: sobre o que recai sob sua competência. É possível criticar o TCU por submeter à sua jurisdição novos temas, tais como contratos de concessão rodoviária por exemplo [4], afastando-se da jurisdição original sobre as contas públicas. Os procedimentos de consenso no TCU seriam apenas a nova fase de expansão das competências do tribunal.

Spacca

Outra é a perspectiva da capacidade – ou autoridade – do tribunal. Nesse caso, o problema não é o TCU falar sobre outros temas que fogem às contas públicas, mas sim o que ele faz quando fala desses temas. Reformar contratos públicos e sancionar gestores não são poderes do TCU dentro da autoridade que a lei lhe conferiu.

Aqui se inserem aqueles que veem no TCU idealmente um órgão consultivo, cuja autoridade se limitaria a subsidiar a administração [5]. Também estaria aqui o juiz fictício do filme, penso eu.

Convergência e a preposição

Na crítica ao procedimento de consenso no TCU, acredito que observamos a convergência entre a crítica do ponto de vista do objeto e a crítica do ponto de vista da autoridade. Ambas, porém, são via de regra expressas por meio da linguagem da competência do tribunal. Muitas vezes o que diferencia o significado é a preposição que acompanha: competência sobre ou competência para.

Talvez seja o caso de começarmos a ser mais claros sobre o que falamos ao conversarmos sobre competência. Pode ser que ajude na análise sobre o tribunal, mas não só. Pode ser que ajude pensarmos na administração como um todo.

Em tempos de revisão do Decreto-Lei 200/67, poderíamos deixar claro quando queremos que órgãos da administração façam coisas diferentes, ainda que sobre o mesmo objeto? Ou, então, trabalhem em conjunto transversalmente sobre diferentes objetos [6]?

Pensar a organização administrativa e a atividade jurisdicional a partir de uma noção aglutinativa de competência aparenta ser pouco promissor.

 


[1] U.S. Food and Drug Administration.

[2] Hoje, depois da reversão da Doutrina Chrevon, talvez o enredo fosse diferente.

[3] Sundfeld, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

[4] Dutra, Pedro. Reis, Thiago. O Soberano da Regulação: o TCU e a Infraestrutura. 1ª ed. São Paulo: Singular, 2020.

[5] Rosilho, André J. Tribunal de Contas da União – competências, jurisdição e instrumentos de controle. 1ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

[6] Esse é um debate que espelha a discussão sobre carreiras públicas. Por exemplo, tanto o PL 2.258/2024, recentemente aprovado, quanto a Portaria nº 5.127/24-MGI trazem o esforço de organizar o ingresso e a carreira na administração federal a partir de funções transversais que possam ser adaptadas para diversas áreas.



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