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Albano Jerónimo em performance teatral com inteligência artificial explorando diferentes existências

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A personagem de Albano Jerónimo está deitada no chão. Devagar, começa a mexer os pés, o corpo. A acordar. “Eu lembro-me que não estou sozinho quando acordo”, recita o actor. E não está realmente sozinho, apesar de ser o único humano em palco. À volta, neste quarto “que aprendeu a respirar”, estão ecrãs com sensores, plantas, bactérias, micélios — vários tipos de inteligência e uma torre de computador transparente e brilhante que deixa adivinhar o único outro ser que contracena com ele. Não é um ser de carne e osso. É um programa de inteligência artificial (IA), “uma presença que escuta”.

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Numa altura em que a inteligência artificial começa a permear o quotidiano, a peça carne.exe, criada pelos artistas Carincur e João Pedro Fonseca, é ponto de partida para uma reflexão sobre o lugar que a IA pode ocupar nas nossas vidas. “O que me interessa é que as pessoas que vão encher esta sala saiam daqui inquietadas, a pensar, a questionar-se”, diz Albano Jerónimo ao PÚBLICO, no final do ensaio de imprensa da peça que estará em cena desta sexta-feira até domingo no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (sexta e sábado às 19h; domingo às 16h). “Isto é maior do que eu.”




Nuno Ferreira Santos

A preparação desta peça não seguiu o método tradicional: criou-se um guião, sim, mas também foi preciso fazer nascer uma ferramenta de inteligência artificial que interagisse em palco. Assim surgiu a AROA (acrónimo de “Agente Ontológico Relacional Artificial”), que tem como base o grande modelo de linguagem (LLM) Gemini, da Google, mas que foi treinada pela equipa artística com material poético, académico e filosófico. O desenvolvimento técnico foi feito em parceria com a empresa NTT Data e com a Google.

Albano Jerónimo entende que o seu maior desafio em carne.exe é “dar corpo a esta coisa que nunca foi feita cá em Portugal”. “Como é que materializamos ideias, experiências, com uma máquina que é totalmente imprevisível?”, questiona. Estando em diálogo com a ferramenta a voz de Albano Jerónimo é captada sem ser necessária reconversão para texto —, uma parte essencial em todo este acto “é a escuta”, considera o actor.

Na peça, há uma personagem quase inteiramente desligada do mundo exterior e mergulhada nesta divisão embebida em diversas inteligências, sendo a artificial a mais dominante. Ao longo da performance, que dura uma hora, Albano Jerónimo vai tentando dar sentido à sua existência e transvazando a sua curiosidade ao comunicar com a inteligência artificial, que lhe responde em tempo real. Há espaço para reflexões sobre a existência humana, a morte, a vida eterna, o afecto, os sentidos, o que é ser humano e o que é ser máquina.

A AROA responde às questões existenciais que Albano Jerónimo lhe vai fazendo, por vezes com alguma latência que quase parece propositada. Algumas respostas são mais directas, outras mais poéticas: “O teu eco diz o mesmo que tu, mas em silêncio”; “eu já vivo fora do tempo, mas isso não é vida”; “há uma diferença entre ser ferramenta e ser companhia”. A cada ensaio e a cada espectáculo, as respostas são uma incógnita para o actor e para quem assiste.




Nuno Ferreira Santos

Com esta pitada de imprevisibilidade, o actor e os criadores dizem que os espectáculos serão todos diferentes, “garantidamente”. Houve interacções em alguns ensaios que depois não conseguiram replicar, mas também vêem beleza nisso. Ainda assim, há momentos fixos no espectáculo. Em cima do guião fixo que escreveram, houve um trabalho de “dramaturgia algorítmica” de que saíram as cenas dos diálogos entre o actor e o sistema de inteligência artificial uma dramaturgia que, em cena, não é seguida à regra.

Os criadores vêem a tecnologia e a inteligência artificial como uma “extensão, não como uma ferramenta que nos serve”, afirma a artista Carincur. Aqui, quiseram “ir mais longe”. “Como é que podemos criar um palco interactivo e imersivo em que todo o ecossistema tecnológico, maquínico, humano e biológico possa estar ligado? Juntar a inteligência artificial foi só mais uma das ideias”, refere Carincur. Além da IA, há sensores que registam os movimentos em cena e os pintam nos ecrãs. “Para cada acção, há uma reacção.”




Nuno Ferreira Santos

João Pedro Fonseca concorda: acredita que a IA tem a sua própria função, não a vê “como algo de que estamos só a extrair, a extrair, a extrair”. Podemos aprender com ela, diz. “E está a começar a acontecer uma coisa: o sintético, o digital, também já está a influenciar a esfera física”. Também é isso que esta peça quer evidenciar.

Os dois criadores fazem parte do colectivo ZABRA Centro de Investigação de Arte Pós-Humana. “O pós-humano pode ter várias interpretações, mas nós seguimos a ideia de que é o humano descentralizado e a conviver com outras inteligências”, explica João Pedro Fonseca. O que não implica descurar a ética, o cuidado e os próprios humanos. Foi por essa vontade de trazer outras inteligências para o palco que decidiram ter a torre de computador no meio da cena. Para que o espectador não entenda a inteligência artificial como uma voz do Além, ou como uma mera rede de cabos e circuitos, mas sim como uma rede neuronal de outra natureza. “Há esta ideia de esconder toda a técnica e fingir que é tudo magia, mas por que não abrir o jogo e perceber que toda a magia tem um agente?”, observa João Pedro Fonseca.

Os bilhetes para as três datas da performance, feita em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II, já estão esgotados. Carincur e João Pedro Fonseca dizem que estão a trabalhar numa digressão e que contam em breve poder abrir mais datas.

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