As mensagens publicadas pela Folha na terça (13/8) mostram um assessor do ministro no STF pedindo informalmente a um assessor de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que o órgão produzisse relatórios sobre investigados nos inquéritos das fake news e das milícias digitais. Na época, Moraes era presidente do TSE.
As mensagens teriam sido trocadas entre agosto de 2022 e maio de 2023, segundo o jornal, e não seguem o caminho oficial para esse tipo de procedimento.
Críticos do ministro afirmam que ele estaria “escolhendo alvos” e usando o órgão para procurar informações nocivas sobre eles, algo conhecido no jargão do direito como “fishing expedition” — ou “pescaria”, em tradução livre.
Após a publicação, o gabinete de Alexandre de Moraes afirmou que a solicitação de informações a outros órgãos, inclusive o TSE, é normal; que não houve escolha de alvos porque todas as pessoas investigadas pelo TSE já eram parte das investigações no STF.
Na quarta (14/8), Moraes confirmou que fez solicitações ao TSE, disse que “não há nada a esconder” e afirmou que houve integridade em todos os procedimentos.
“Todos os procedimentos foram realizados no âmbitos de investigações já existentes”, disse ele em um pronunciamento.
“Seria esquizofrênico eu me auto-oficiar, até porque como presidente do TSE, no exercício do poder de polícia, eu tinha o poder pela lei de determinar a feitura dos relatórios”, disse.
Desde que se tornou ministro do STF, em 2017, por indicação do então presidente Michel Temer, Moraes tem estado constantemente sob os holofotes.
Relator dos inquéritos sobre fake news e sobre milícias digitais, que incluem também as investigações sobre as invasões em Brasília em 8 de janeiro de 2023promovidas por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Moraes acabou no centro de disputas altamente polarizadas.
Para alguns, ele se tornou “herói da República”, entendimento que ganhou mais apoio após os episódios do 8 de janeiro de 2023.
Para outros, porém, é visto como um ministro que acumulou poderes demais e tem desrespeitado garantias constitucionais, ferindo o sistema democrático que pretende preservar.
Relembre abaixo outras disputas polêmicas envolvendo o ministro nos últimos anos.
Em abril de 2024, o bilionário Elon Musk publicou críticas contra Moraes em sua plataforma de rede social X.
Musk chegou a ameaçar descumprir decisões judiciais e propôs a renúncia ou impeachment de Moraes, a quem acusou de “praticar censura”.
O ministro havia determinado que contas que espalharam conteúdo criminoso no contexto dos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro fossem bloqueadas na plataforma.
Após os pronunciamentos de Musk, Moraes incluiu o dono do X no inquérito que investiga a existência de milícias digitais e também abriu um novo inquérito para apurar se o empresário cometeu crimes de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime.
Além disso, estabeleceu uma multa diária de R$ 100 mil para cada perfil da rede social que viesse a ser desbloqueado em descumprimento de decisão do STF. Moraes também frisou a possível responsabilização dos representantes legais da empresa no Brasil caso isso acontecesse.
Depois das ameaças de Musk sobre não cumprir as decisões de Moraes, o perfil oficial do X divulgou em nota que as decisões seriam questionadas judicialmente.
“A X Corp. foi forçada por decisões judiciais a bloquear determinadas contas populares no Brasil. (…) Somos ameaçados com multas diárias se não cumprirmos a ordem”, disse a empresa.
“Não acreditamos que tais ordens estejam de acordo com o Marco Civil da Internet ou com a Constituição Federal do Brasil e contestaremos legalmente as ordens no que for possível”, continuou a nota.
Perseguido por suspeitos
Em fevereiro de 2024, veio à público que, de acordo com investigação da Polícia Federal (PF), Alexandre de Moraes seria um dos alvos de grupo que articulava “tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito” no Brasil após as eleições de 2022.
Segundo a investigação da PF, Bolsonaro teria se envolvido na confecção de uma minuta de decreto com medidas para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e militares teriam organizado manifestações contra o resultado das eleições e atuado para garantir que os manifestantes tivessem segurança.
A Polícia Federal afirmou que o grupo em torno de Bolsonaro teria monitorado os passos de Moraes, incluindo acesso à sua agenda de forma antecipada, e planejava tirá-lo do cargo de ministro caso conseguisse dar um golpe.
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil no inicío do ano tiveram opiniões divergentes sobre o assunto. Para alguns, o fato de Moraes estar na mira da suposta organização criminosa minaria sua imparcialidade para tomar decisões no caso.
Já outros ponderam que a “vítima” dos crimes em investigação não seria o ministro, mas, sim, o Estado democrático de direito. Dessa forma, Moraes não seria considerado juridicamente uma parte diretamente interessada no caso.
Na época, o STF manteve Moraes no caso e se manifestou dizendo que o Código de Processo afasta qualquer suspeição ou impedimento quando as ameaças ou coações são feitas ao juiz que já conduz o inquérito ou processo.
A ideia é evitar que um réu ou investigado tente propositalmente afastar o magistrado da causa.
Afastamento de governador e prisões
Para Moraes, a conduta de Ibaneis, um aliado de Bolsonaro, foi “omissa” em relação ao vandalismo praticado por bolsonaristas na tarde deste domingo.
Segundo o ministro, as forças de segurança do DF não se planejaram para impedir o vandalismo e a depredação dos prédios públicos de Brasília.
A decisão gerou controvérsia porque foi tomada sem pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), mas em resposta a um pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) e do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AC).
Além disso, Lula já havia determinado a intervenção federal na área de segurança no DF.
As prisões dos manifestantes determinadas por Moraes também geraram bastante controvérsia e oposição da Defensoria Pública da União (DPU).
Cerca de 1.200 pessoas da área de um acampamento no QG do Exército em Brasília foram presas no dia 9, segundo relatório da defensoria.
Somadas às prisões efetuadas da noite anterior durante os atos de vandalismo, cerca de 1.400 pessoas foram detidas.
Depois, essas pessoas foram submetidas a audiências de custódia com juízes, direito que é garantido aos presos para que seja avaliada a legalidade da prisão. Essas audiências devem ser realizadas em 24 horas, mas diante do número elevado de presos, levaram alguns dias.
Após essas audiências, Moraes decidiu converter 942 prisões em flagrante em prisões preventivas, sob a justificativa de garantir a ordem pública e a efetividade das investigações.
Segundo um levantamento da Defensoria Pública da União, em ao menos seis casos Moraes estabeleceu a prisão preventiva contrariando a posição do Ministério Público, que havia recomendado a liberação da pessoa ou outras medidas, como prisão domiciliar.
Na avaliação da DPU, a ação contra centenas de pessoas a partir da decisão genérica de Moraes resultou em prisões que não cumpriram os trâmites previstos na lei e deveriam ser imediatamente revertidas.
Crise entre poderes
Em 2022, Moraes esteve envolvido em uma crise entre o Judiciário e o Legislativo quando o então deputado federal Daniel Silveira desafiou uma ordem do ministro para que ele usasse tornozeleira eletrônica.
Réu em um processo que tramitava no STF em que era acusado de cometer ataques a membros da Corte, Silveira afirmou que passaria a a dormir na Câmara dos Deputados — o que, em tese, impossibilitaria a Polícia Federal de cumprir a decisão.
A situação gerou um grande desconforto entre o Supremo e a Câmara.
No fim, Silveira concordou em colocar a tornozeleira, aliviando a tensão entre os dois Poderes. Depois ele acabou sendo condenado a oito anos de prisão pelos crimes de ameaça ao Estado democrático de direito e coação no curso do processo.
No dia seguinte à condenação, o então presidente Jair Bolsonaro, que era seu aliado político, concedeu perdão presidencial a Silveira.
Mas em 2023 o STF anulou o perdão presidencial por desvio de finalidade. O objetivo da existência do perdão presidencial não é o favorecimento de aliados políticos.
Moraes era relator do caso, mas a decisão foi tomada em plenário pelo Supremo.
Medidas investigativas
Ao longo de 2022, ano de eleições presidenciais, decisões de Moraes em investigações autorizadas pelo STF levaram a uma tensão permanente com o Palácio do Planalto, na época ocupado por Bolsonaro.
Um desses momentos foi quando Moraes autorizou uma ação da Polícia Federal contra empresários que teriam manifestado apoio a um eventual golpe de Estado caso o ex-presidente Lula vencesse a eleição presidencial de outubro.
A medida gerou revolta no meio bolsonarista, com acusações de autoritarismo contra Moraes.
Houve também questionamentos de juristas que não apoiavam o presidente mas viram possíveis excessos e ilegalidades na decisão que autorizou a apreensão de celulares e o bloqueio de contas bancárias e de perfis dos empresários nas redes sociais.
Oito empresários alvos da ação policial teriam trocado mensagens em um grupo de WhatsApp manifestando apoio a um possível golpe de Estado, conversas que foram reveladas em reportagem do portal Metrópoles.
O professor de direito da USP, Rafael Mafei, disse à BBC na época que, se não existissem outros elementos para fundamentar a decisão além da troca de mensagens, houve ilegalidade na autorização de Moraes.
Isso porque as mensagens divulgadas até então não indicariam ações concretas de preparação para um golpe. Na avaliação de Mafei, as leis brasileiras não permitem uma devassa na vida das pessoas com base em meras conjecturas de possíveis crimes.
“O fato de a pessoa dizer num grupo de WhatsApp fechado que tem saudade da ditadura ou que achava que, se fosse para dar o golpe, já tinha que ter sido dado logo no começo do governo, isso não configura crime. A não ser que haja prova que essas pessoas estejam efetivamente agindo e se movimentando para viabilizar um golpe de Estado nessas eleições. Aí sim, a gente estaria diante de uma situação grave, que exigiria uma ação antecipada e dura como essa”, disse Mafei à BBC.
Outros juristas afirmaram que era difícil avaliar a decisão sem ter acesso aos autos, que estavam em segredo de Justiça.
Relator dos casos
As investigações concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inquérito das fake news, que foi aberto no início de 2019 por decisão direta do então presidente do STF, Dias Toffoli.
O inquérito foi aberto sem haver um pedido da Procuradoria-Geral da República, do Ministério Público, na época comandada por Raquel Dodge.
Isso gerou constrovérsia, porque a Constituição exige um pedido do Ministério Público para abertura de processos criminais no país.
Moraes não escolheu ser relator do caso – ele foi apontado por meio do sistema de distribuição de processos do STF.
Em um julgamento do STF de junho de 2020, o plenário considerou o inquérito legal.
A avaliação foi que o Supremo pode abrir investigação quando ataques criminosos forem cometidos contra a própria Corte e seus membros, representando ameaças contra os Poderes instituídos, o Estado de Direito e a democracia.
A partir daí, outros inquéritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocráticos ou a atuação de milícias digitais. Em vez de a relatoria dessas investigações serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem possíveis crimes relacionados ao inquérito inicial.
“A lógica do Estado de direito é dividir poder, evitar que uma autoridade só, por mais poderosa que ela seja, decida sobre tudo. Porque se essa autoridade falhar, e é previsível que ela vá falhar, ninguém mais tem proteção em lugar nenhum”, argumentou o professor.
Já o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei, afirmou que é natural que haja controvérsias quando se trata de um volume tão grande de decisões.
No entanto, ele avaliou que, de modo geral, o ministro vinha agido corretamente para enfrentar o que via como o maior ataque ao sistema democrático estabelecido pela Constituição de 1988.
“Evidentemente, se a gente for olhar uma por uma, é muito difícil – e isso vale para Alexandre de Moraes, para qualquer outro magistrado – que haja consenso sobre todas as decisões que tomou num universo tão grande de casos, porque as pessoas têm mesmo interpretações divergentes, seja sobre os fatos, as provas, ou a (aplicação da) lei”, afirmou.