Nos estudos internacionais sobre privatizações, o Brasil tem o registro elogiável da legitimação judiciária obtida por todos os vários modelos utilizados até aqui. O ponto negativo está na permissividade diante do uso ilícito das instituições do sistema de Justiça. Investidores foram agredidos na porta da Bolsa de Valores, além de serem demorada e injustamente perseguidos nos tribunais, sem qualquer sanção aos verdadeiros infratores.
No início dos anos 1990, juiz federal em São Paulo, recebi para decisão uma das primeiras ações contra privatização no Brasil. Grande número de jornalistas aglomerava-se no fórum. Era a única circunstância com aparência de regularidade. Tudo o mais se afigurava extravagante.
Um grupo de litigantes distribuíra dezenas de ações por todo o território nacional, para discutir a questão do leilão circunscrita a São Paulo, em desrespeito evidente às regras processuais. Durante a semana, fragmentos diversionistas de cálculos temerários sobre o preço do ativo público haviam aparecido na imprensa como a verdade pitagórica.
Mas a leitura da petição contestatória deixou claro o velho strepitus fori, a publicidade opressiva; a ofensiva à capacidade de defesa de uma parte pela audácia insultuosa, publicitária e maliciosa da outra. Na embalagem do moralismo de ocasião – algo contrário à moralidade administrativa. Tudo explicado na advertência de Sepúlveda Pertence no Supremo Tribunal Federal (STF): “A alegação de ofensa ao princípio da moralidade, quero deixar claro também que não acolho no caso. Confesso meu temor do uso, sem muita discrição, desse princípio constitucional, porque, por meio dele, podemos estabelecer o governo dos juízes, que não é, por ser de juízes, menos arbitrário que outros governos arbitrários”.
O padrão de contestação frívola foi analisado à saciedade ao longo dos anos. No caso das privatizações, a maquinação é apta a causar dano sério ao contribuinte: a intimidação dos investidores, com a diminuição da concorrência e o aviltamento do preço do bem público.
Seja como for, não é por acaso que o Poder Judiciário jamais desautorizou qualquer privatização. O modelo da Sabesp, por exemplo, é focado na universalização do serviço civilizatório. O projeto é sensível aos 100 milhões de brasileiros em condições desumanas, sem tratamento de esgoto.
Não obstante, a oposição foi ao STF, depois de derrotada nas instâncias da Justiça de São Paulo. Ao negar a liminar, o presidente Luís Roberto Barroso apontou o manifesto descabimento da própria ação: “Para o cabimento da ADPF, não basta a alegação de não observância de um preceito fundamental existente na Constituição. (…) Não compete ao Supremo Tribunal Federal arbitrar a conveniência política e os termos e condições do processo de desestatização da Sabesp (…)”.
A recusa ao mero contraditório político, de conveniência, tem o amparo do plenário do STF, nas palavras lúcidas de Nelson Jobim: “O Poder Judiciário, e em especial o STF, não pode ser mero ‘aparelho’ para fins eleitorais. (…) Toda a prova são folhas de jornais. É uma técnica conhecida. Planta-se a matéria para depois submetê-la ao Supremo. (…) Estamos sendo instrumento político. Precisamos colocar o pé no chão, isto é um jogo político”.
O que há de novo nas contestações inconsistentes contra as privatizações é o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) perante o STF. A instituição argumenta: “Tal como a mulher de César, não basta ser honesta, é preciso parecer honesta”.
Antes de tudo, é necessário registrar que a mulher do líder romano César tem identidade: Pompeia Sula. Foi envolvida em episódio rumoroso quando o devasso Públio Clódio se vestiu de tocadora de lira e invadiu a festa da Boa Deusa, reservada às mulheres. Plutarco lembra que César repudiou a mulher, mas nada alegou contra Clódio, quando chamado a depor. O biógrafo cogita duas hipóteses: César partilhava do equívoco do parecer da AGU; ou não quis se indispor com o povo que apoiava Clódio.
Além de Plutarco, outras fontes evidenciam que Pompeia Sula foi vítima de preconceito constrangedor ou do oportunismo político. Foi, e é, discriminada como mulher anônima em provérbio desumanamente raso.
Para esse deslize o STF tem jurisprudência: “É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais”.
Nas privatizações brasileiras, as decisões executivas e judiciárias, além de regulares, são bem claras. Ao contrário da sentença absolutória de Clódio, escrita em linguagem ilegível, porque os juízes romanos desejavam esconder o que haviam feito.
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SECRETÁRIO DE ESTADO DA JUSTIÇA E CIDADANIA DE SÃO PAULO, ADVOGADO LICENCIADO, FOI PRESIDENTE E CORREGEDOR DO TRF3, JUIZ DO TRE-SP E PROMOTOR DE JUSTIÇA DE ENTRÂNCIA ESPECIAL (SP)