Associações de autistas pedem ação do governo contra terapia “similar a regime manicomial“

Associações que representam pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) pediram ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania providências contra uma prática disseminada no setor privado de saúde, pela qual o paciente passa muitas horas por dia em clínicas, sem que tenha retornos no desenvolvimento.

As associações dizem, ainda, que a prática de submeter pessoas autistas a longas jornadas terapêuticas, muitas vezes excedendo 40 horas semanais, caracteriza uma “forma moderna de regime manicomial”.

“Embora não envolva confinamento físico, como nos antigos manicômios, essa imposição de horas excessivas de terapia exerce um controle desproporcional sobre a vida desses indivíduos”, diz Guilherme de Almeida, presidente da Associação Nacional Para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil).

A associação encabeça a denúncia na Associação Brasileira para Ação dos Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) e na Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI).

Almeida, que é autista, formado em direito, pesquisador da Unicamp e integrante do Projeto de Neurodiversidade da Universidade de Stanford, explica que à medida que uma criança passa por um tratamento no qual precisa ficar longas horas diárias em uma clínica, ela perde a oportunidade de sociabilização, o acesso à educação e até de lazer.

O alvo principal da denúncia é a Análise do Comportamento Aplicada (Aba), técnica amplamente disseminada como o tratamento mais eficaz para crianças autistas.

“Essa abordagem é comumente justificada sob o argumento de que uma maior quantidade de horas de intervenção terapêutica resulta em melhores resultados de desenvolvimento. Contudo, tal justificativa não leva em consideração as necessidades individuais, o direito à autodeterminação e a dignidade da pessoa autista, forçando-a a adequar-se a comportamentos e expectativas neurotípicas”, diz Almeida.

As associações criticam a falta de regulamentação no setor e a ampla disseminação do Aba como um “tratamento para os autistas”, o que abre caminho para que a indústria da saúde ganhe dinheiro com essa terapia. “Hoje mutas vezes fazem um curso de duas semanas e começam a vender como produto”, diz.

“A criança autista não oralizada pode precisar de uma fono [fonoaudióloga], de uma TO [terapia ocupacional], ou seja, vai depender do desafio que ela tem. Se ela tem um desafio com alimentação, ela pode precisar de um nutricionista. Não existe isso de tratamento para autista, e sim, tratamento para as dificuldades que ele tem”, diz Almeida.

No Sistema Único de Saúde (SUS), Almeida cita que o atendimento vai depender de uma avaliação multidisciplinar que considerar as necessidades daquela criança. No entanto, quando uma família entra na Justiça pedindo a terapia com base na Aba, muitas vezes o juiz atende ao pedido.

Sobre a regulamentação, Almeida diz que a “validação do tratamento é fraca, tanto é que recentemente a associação norte-americana de medicina retirou a Aba das suas técnicas de referência”, diz.

No ano passado, a Associação Médica Americana (AMA) retirou seu apoio à Aba como único e mais eficiente tratamento para os pacientes diagnosticados com transtorno do espectro autista, ao considerar crescentes críticas ao tratamento.

Por outro lado, o psicólogo e supervisor clínico, Guilherme Reis, mestre em análise do comportamento aplicada ao TEA, defende que o ABA tem forte evidência científica e conta com pesquisas produzidas em diferentes partes do mundo há décadas.

Ele destaca que uma das possíveis causas da perspectiva negativa sobre o este modelo é que existem profissionais que vendem o tratamento por ABA, mas não o aplicam de fato.

“Não é que o ABA é ruim, mas ele pode ser feito de um jeito errado. Ainda falta muita regulamentação no Brasil. Faltam instituições que promovam diálogo entre o poder público e as empresas para regularizar a profissão de quem trabalha com autismo.”

A falta de profissionais devidamente qualificados, segundo ele, se dá em um cenário de alta dos diagnósticos de TEA. Ou seja, o aumento da demanda por profissionais especializados não tem sido acompanhado pela quantidade e qualidade dos formados no setor.

“E mesmo nesse modelo de tratamento intensivo, o tempo não é só dentro de uma clínica. Esse total de 40 horas inclui acompanhamento em atividades educacionais e supervisão em casa também”, exemplifica.

Por fim, Reis analisou que a restrição do uso de ABA no Brasil poderia trazer prejuízos às pessoas diagnosticadas com autismo.

“Milhares de pessoas dependem de um tratamento sério, independente se é ABA ou não. O que falta é que estes cidadãos contem com uma boa regulamentação”, conclui.

Em nota, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou que regula o setor de saúde suplementar no país, sendo responsável por definir regras e fiscalizar o cumprimento das normas do setor pelas operadoras de planos de saúde e administradoras de benefícios. Com isso, conforme o comunicado, não tem atribuição legal para definir, autorizar ou determinar indicação e duração de tratamentos para os beneficiários de planos de saúde.

“Conforme a RN 539/2022, vigente desde 01/07/2022, é obrigatória a cobertura para qualquer método ou técnica indicado pelo médico para o tratamento de paciente diagnosticado com transtornos enquadrados na CID F84, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre os quais está o transtorno do espectro autista”, aponta a nota.

Ainda segundo a Agência, a operadora está obrigada a disponibilizar atendimento com profissionais de saúde aptos a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para seu tratamento, sem limite de horas ou sessões, seguindo a indicação médica para o tratamento, dentre os quais o método ABA.

Sobre a quantidade excessiva de horas de tratamento, o psicólogo Guilherme Reis apontou que o máximo de tempo indicado pelos profissionais é 40 horas semanais.

“A decisão sobre as horas terapêuticas de cada método compete aos profissionais de saúde responsáveis pelo tratamento, não havendo participação da ANS”, reitera a nota da Agência.

“É um tratamento muito recomendado por várias associações internacionais e organizações de direitos humanos que apontam para a comprovação científica. É receitada basicamente por ter essa validação e apresentar resultados”, argumenta o psicólogo.

Por fim, a Agência ressalta que tem grande preocupação com a qualidade da assistência prestada ao beneficiário de planos de saúde e, nesse sentido, tem diversas iniciativas para estimular as operadoras e os prestadores de serviços de saúde a manterem o aprimoramento permanente dos serviços que prestam.

A CNN ainda aguarda resposta do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

A CNN também tentou contato com especialistas do assunto no Conselho Federal de Psicologia e no Instituto Par, que indicou o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Nenhuma das entidades respondeu com indicação de porta-voz para entrevista.

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