Coluna | O que está em disputa no governo Lula?

O que está em disputa é o destino da luta contra a extrema direita

“Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas. 
Duas meias verdades não perfazem uma verdade.”
 Eduard Dekker, aliás, Multatuli (1820/1887), Ideias.

O Brasil é um país fascinante, entre outras razões, pelos seus surpreendentes paradoxos. Paradoxos são contradições contraintuitivas. Entre nós, nada é muito óbvio. O país não tem dívida externa líquida, as reservas internacionais estão acima de dois anos de importações e aumentando, o Produto Interno Bruto (PIB) vem crescendo desde 2022 em torno de 3% ao ano, a inflação está em torno de 4%, acima do centro, mas dentro dos limites da meta, o desemprego vem diminuindo, mas ainda acima de 5%, e o cenário externo passou a ser mais favorável com a sinalização da queda dos juros nos Estados Unidos, afastando o perigo de uma desvalorização do real diante do dólar. Mas o Banco Central acabou de aprovar, por unanimidade, portanto com o beneplácito dos diretores indicados pelo governo Lula, um aumento de 0,25 na taxa Selic, que subiu para 10,75%. Em 2023 foram gastos com juros dos títulos da dívida pública 614,55 bilhões, contra R$ 503 bilhões em 2022. Os juros devem consumir nessa dinâmica algo próximo a 8% do PIB. 

Lula aceitou, depois de um ano de luta pública contra o presidente do Banco Central, a linha de “pisar no freio” sob pressão do mercado financeiro. Em outras palavras, ainda que o teto de gastos tenha sido substituído pela estratégia do arcabouço fiscal, o tripé macroeconômico neoliberal permanece intacto: cambio flutuante, busca de déficit zero e meta de inflação. Evidentemente, este giro alimenta uma justa decepção e frustração na esquerda. Mas não é o bastante para concluir que a melhor tática seria um giro da esquerda para a oposição ao governo Lula. Não é lúcido concluir que não há nada mais em disputa diante do governo Lula. 
 
Comecemos pelo princípio: em tudo que existe há contradições. Em qualquer governo existente e por existir encontraremos conflitos internos. Até no Vaticano, apesar do dogma católico de que o papa seria infalível pela iluminação vigilante do Espírito Santo, há disputas, ininterruptamente. A questão da análise de um governo, em perspectiva marxista, inicia pela caracterização da natureza de classe do governo. Nada é mais importante, porque a referência de classe é o rubicão, ou seja, entre todos os outros, o fator qualitativo que orienta a posição dos socialistas.  Mas não é a única régua. O carácter de classe não esgota a análise porque não é verdade que todos os governos burgueses são iguais. Ao contrário, há muita variedade. Há muitos tipos diferentes de governos burgueses apoiados em distintos blocos sociais. É muito raro e circunstancial que um governo tenha apoio consensual em todas as diferentes frações burguesas. O padrão é que seja apoiado em algumas frações contra outras.

O governo Lula é um governo burguês. Um governo atípico ou até uma anomalia para os critérios de dominação da classe dominante, mas burguês. É um governo anormal porque o principal partido dentro da coalizão que o sustenta é o PT, e Lula, a maior liderança popular dos últimos quarenta anos, está à sua frente. A representação burguesa no seu interior não é decorativa. A fração que integra o governo é muito representativa e poderosa. 
Mas a conjuntura é qualitativamente diferente de vinte anos atrás. É muito pior, porque surgiu no mundo e no Brasil um movimento de extrema direita com liderança neofascista que influencia metade do país e se apoia em uma relação social de forças desfavorável para os trabalhadores. São estes fatores que explicam por que seria errado a esquerda radical integrar o governo Lula. Disciplina de governo exigiria um apoio incondicional, o que seria indefensável. Mas são elas também que explicam por que seria um erro passar para o campo de oposição ao governo. Uma localização na oposição imporia uma crítica intransigente, o que seria imperdoável. Não há qualquer possibilidade de “ultrapassagem” do governo Lula pela esquerda. Na oposição ao governo quem ocupa todo o espaço político é a extrema direita.

A parcela da esquerda que defende a participação no governo esgrime dois argumentos principais. O primeiro é que governo vem realizando reformas progressivas: aumentou o valor do salário mínimo acima da inflação e conseguiu reduzir o desemprego; turbinou as verbas de financiamento do acesso à casa própria através do Minha Casa, Minha Vida; ampliou as políticas sociais compensatórias como o Bolsa Família; respondeu ao desastre das inundações no Rio Grande do sul com um programa emergencial de reconstrução; reduziu o desmatamento na Amazônia e defende uma autoridade climática; garantiu o acesso de negros ao ensino superior através da política de cotas; impulsionou a extensão da Rede Federal de Ensino superior através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), entre outras. O segundo é que não era possível ir além em um ano e meio em função de uma relação de forças entre as classes que é desfavorável para os trabalhadores. 

Estes dois argumentos são uma meia-verdade, portanto, uma meia-mentira. Não é incomum que governos burgueses, quando sob pressão da mobilização dos trabalhadores e seus aliados, façam concessões. Os exemplos internacionais são incontáveis. Mesmo no Brasil, um país em que arrancar a conquista de direitos sociais da burguesia foi, particularmente, difícil, encontraremos inúmeros exemplos. Getúlio Vargas cedeu, nos anos cinquenta, à regulamentação do salário mínimo, da estabilidade no emprego e criou a Petrobrás, entre outras companhias estratégicas. Sarney viu-se obrigado, nos anos oitenta, a negociar uma escala móvel de salários, na forma do gatilho, primeiro semestral, depois trimestral, finalmente, mensal. Eram governos em disputa? Mereciam o apoio da esquerda? 

O segundo argumento se apoia no senso comum de que Lula não fez mais até agora porque não podia. A relação de forças entre as classes oscila e flutua dependendo de muitos fatores, é verdade. Acontece que um desses fatores, na verdade, um dos principais para incentivar a capacidade de mobilização popular é a própria iniciativa do governo. E a principal preocupação do governo Lula foi outra. Foi e permanece sendo manter a concertação com a fração da classe dominante que garante sua governabilidade no Congresso Nacional. Esta estratégia é insuficiente para derrotar o bolsonarismo, que é o desafio central. O papel da esquerda combativa é criticar esta impotência. Se não for corrigida será fatal para o próprio governo Lula.

A parcela da esquerda radical que defende o giro para a oposição esgrime dois argumentos centrais. O primeiro é que o governo não rompeu sequer com os limites da estratégia neoliberal de ajuste fiscal, portanto, mesmo com a diminuição da pobreza, é herdeiro de Temer e até de Bolsonaro por uma política econômica anti operária e popular que beneficia os grandes capitalistas. O segundo é que não é possível lutar contra a extrema direita sem denunciar o governo Lula, que é responsável pela crise social que explicaria o aumento da audiência do bolsonarismo. 

Os dois argumentos têm um “grão” de verdade, mas são falsos. Não é verdade que não há diferença entre o governo Lula 3 e os governos que assumiram o poder depois do golpe institucional de 2016 que derrubou o governo Dilma Rousseff. Não é honesto. Trata-se de um exagero, há muitas diferenças. Tampouco é justo concluir que não se pode lutar contra Bolsonaro sem lutar contra o governo Lula. Ao contrário, o que a vida ensina é que não será possível vencer na luta contra a extrema direita sem o apoio do governo Lula.

Não está em disputa se Lula terá o seu “momento socialista Fidel”. Não está em disputa se Lula terá seu “momento nacional desenvolvimentista Chávez”. Não está em disputa sequer se Lula terá seu “momento reformista Allende”. Afinal, que está então em disputa? O que está em disputa é o destino da luta contra a extrema direita. Neste terreno, a frente única de esquerda é uma tática indispensável para vencer o bolsonarismo. Sem Lula e o PT não é possível nem pensar em vencer os neofascistas. Aqueles que subestimam este perigo ainda não compreenderam a máxima gravidade da situação politica no mundo e no Brasil.  
 

Edição: Geisa Marques



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