Esta é uma velha canção folclórica das ilhas britânicas que trata de um jovem em luto por perder sua amada. Ele se debruça sobre seu túmulo e chora por 12 meses e um dia. Ao final deste último dia, o fantasma surge e pede para que ele a deixe descansar finalmente, pois o pranto ininterrupto dos vivos impedia que ela ficasse no estado de paz em que deveria permanecer. Ela estava, afinal de contas, morta. O noivo, então, pede para se juntar a ela, mas isso não é possível. Aquela forma espectral tenta convencer a pessoa viva que o luto não deve se confundir com o desejo do reencontro, pois a vida é para os vivos e para as lembranças.
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Os mortos são memórias e histórias, mas suas vozes em primeira pessoa silenciaram. Não há mais um eu que enuncia, salvo no caso de gravações preservadas em alguma mídia. Mesmo assim, essas palavras não surgem de uma consciência ainda presente, mas daquilo que se guardou dela quando ainda existia como presença física. A tecnologia, no entanto, tem olhado para a morte e buscado desafiar, de alguma forma, a sua definitividade.
Com o aprimoramento dos grandes modelos de linguagem e do aprendizado da máquina, a inteligência artificial tomou para si o poder de ressuscitar digitalmente, por meio de imagens e voz, pessoas que já morreram. Como tudo que a IA apresenta neste momento, no entanto, estas entidades retornadas não apresentam uma consciência. São um amálgama de impressões, performatividades e aparências da pessoa que busca recriar. Não é a pessoa, mas um modelo daquela pessoa, uma ideia maquinal sobre como aquele ser humano se comportava em um dia mediano. Um fantasma digital que parece cumprir com o desejo do nosso herói desolado: um retorno ao mundo do visível, um último encontro.
Ressurreição digital
Os riscos surgem quando essa recriação dificulta o processo de enlutamento saudável, prolongando digitalmente a presença de quem não está mais aqui. Não se trata de uma mensagem póstuma ou da utilização de atores para representar alguém, mas de uma efetiva apresentação do corpo digitalizado.
Neste ponto, uma série de questões jurídicas e éticas tomam forma. Entre elas, a do consentimento: quem tem o direito de decidir sobre essa “ressurreição digital”, uma vez que a consciência da pessoa retornada não existe mais? Essa pergunta parece simples, mas carrega implicações profundas. A resposta jurídica, a princípio, é de que somente a própria pessoa falecida pode autorizar sua recriação pós-morte. No direito brasileiro contemporâneo, nenhuma outra figura, nem cônjuge, nem filhos, nem herdeiros, possui esse poder. Isso porque os direitos da personalidade, que incluem imagem, voz, expressões, trejeitos e forma de se manifestar, são intransmissíveis e extinguem-se com a morte, quando, de acordo com o artigo 6º do Código Civil, deixa de existir a pessoa natural.
O que resta, tal como a memória, são desdobramentos póstumos de alguns desses direitos, dentre os quais os aqui tratados. São ecos dessa personalidade, expectativas sobre o cuidado com o seu nome que se projetam após a morte natural da pessoa, unindo-se à justa expectativa familiar sobre as memórias de seu ente querido. De certa forma, o que se protege é um direito a morrer em paz (e assim ficar). Entenda-se, aqui, que a paz não é certeza sobre a ausência de referências àquela pessoa a partir de sua morte, mas a proteção razoável sobre sua memória, que ainda é ponderada com o direito da sociedade à sua memória coletiva.
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Herança digital
O direito sobre as características que faziam aquela pessoa ser uma pessoa, portanto, não se transmite com a herança. Em outras palavras, a única autorização válida para uma recriação digital precisa ter existido em vida. Pode constar em testamento, em um instrumento jurídico próprio ou no que muitos já chamam de “contrato de ressuscitação digital”, que define, de forma objetiva, se a pessoa permite essa recriação, como ela pode ser feita e quais limites devem ser respeitados.
Por conta disso, o papel da família não é de autorizar, mas de proteger a memória do falecido. O Código Civil, nos artigos 12 e 20, confere aos familiares o dever de zelar pela sua memória e honra. Isso significa que, caso uma recriação digital coloque palavras, posições ou comportamentos que contradigam frontalmente aquilo que a pessoa era em vida, há violação jurídica clara. Nesse caso, já não falamos de autorização, mas de responsabilização por uso indevido da memória. A colaboração dos familiares fornecendo fotos, histórias, trejeitos, referências, não altera essa regra. Em uma situação juridicamente nebulosa como esta, é difícil definir exatamente o que deve ser feito pelos sobreviventes, mas é certo que devem garantir que a recriação, caso venha a acontecer, seja fiel à pessoa real, dentro dos limites do que ela representou em vida.
O avanço da IA coloca esse tema em uma zona de urgência. Se alguém cria um avatar digital que expressa opiniões políticas opostas às defendidas pela pessoa em vida, por exemplo, ou a representa de forma degradante ou distorcida, não estamos diante de uma discussão meramente tecnológica, mas de uma violação direta dos direitos da personalidade e da memória de alguém para fins que não lhe seriam familiares. Por isso, fica claro que a fronteira entre homenagem e deturpação não pode ser definida por algoritmos, mas por parâmetros éticos e jurídicos.
Morte antes da nova tecnologia
Há ainda as zonas cinzentas dos casos de pessoas que morreram muito antes dessa tecnologia existir e que jamais poderiam ter consentido ou recusado tal prática. Projetos como o PL 3592/2023 e o PL 3608/2023 tentam dar contornos a essa questão, mas evoluem em ritmo mais lento do que as tecnologias baseadas em grandes modelos de linguagem.
Diante desse descompasso, a diretriz mais prudente é a que precisa guiar qualquer uso dessa tecnologia: quem recria digitalmente alguém deve tratá-lo como trataria uma pessoa viva. Se você traz à vida, mesmo que digitalmente, uma pessoa, que seja responsável por como essa imagem será culturalmente percebida e recepcionada, pois aquela imagem, hoje alienada de uma existência natural, não vai poder se defender sozinha. Como tenta nos mostrar a heroína espectral da balada antiga, há de se entender que a morte é parte de um ciclo natural da existência, e a nossa dificuldade em aceitá-la não pode macular a expectativa de paz da qual somos titulares, mesmo após a morte.
A ressurreição digital talvez seja o fenômeno mais assombrológico deste começo de século 21. O conceito Derridiano, apropriado por Mark Fisher para nos falar do nosso apego aos ciclos de retorno do passado, da persistência de seus elementos no presente. A interação com fantasmas digitais pode fazer parte destacada dessa coleção de nostalgias melancólicas que não conseguimos elaborar tão bem assim. No fim, caso não enderecemos a questão de forma sóbria no campo jurídico-político da imagem e da memória, corremos o risco de cumprirmos de forma trágica com a vontade do noivo desolado: nos juntarmos simbolicamente aos nossos mortos, todos sem paz.

