Com o cessar-fogo no Oriente Médio, o bitcoin (BTC) voltou a ser negociado acima de US$ 105 mil, mas é preciso fazer uma análise do comportamento da criptomoeda primária durante o período de pico de tensão entre Irã e Israel. Mesmo com escassez programada, fácil portabilidade e resistência à censura, o bitcoin não se comportou como uma reserva de valor.
Em vez de subir com os riscos, como o ouro, o BTC caiu. E essa contradição levanta uma pergunta incômoda: se o ativo tem todas as boas propriedades, por que ainda não é tratado como porto seguro?
O que define uma reserva de valor?
Em primeiro lugar, é preciso entender o que é uma reserva de valor. Esse termo se refere a um ativo capaz de preservar o poder de compra no tempo. Para isso, é preciso quatro características básicas: liquidez, escassez, durabilidade e portabilidade.
É por isso que o ouro se mantém há séculos nessa posição. O metal cumpre boa parte desses critérios: é raro, resistente ao tempo e reconhecido globalmente. Mas isso não significa que seja acessível para todos. Armazenar ouro exige segurança, espaço físico e, muitas vezes, custódia especializada. Além disso, sua baixa portabilidade — por ser pesado e difícil de fracionar — limita seu uso em situações práticas.
É nesse cenário que, mesmo sem lastro em nada físico, o dólar continua sendo um ativo procurado em momentos de instabilidade. Quando há crise, guerra ou risco sistêmico, investidores e governos correm para a moeda estadunidense não porque ela seja perfeita — mas porque garante acesso à liquidez imediata.
Em 2006, na primeira semana da guerra entre Israel e Líbano, o dólar registrou alta de 2% como resposta imediata ao risco. Mas, no conflito atual, o cenário global é outro. Com a economia dos Estados Unidos sob pressão e o dólar perdendo espaço como ativo de proteção, o foco do mercado se voltou para o petróleo. Resultado: no auge da tensão entre Irã e Israel, o índice do dólar (DXY) subiu apenas 0,25% — uma reação bem mais tímida do que em conflitos anteriores.
Mas e o bitcoin nesse cenário?
A criptomoeda também reúne as qualidades do ouro, se não de uma forma melhor. Seu fornecimento é limitado, ela pode ser movida sem intermediários e não depende de governos. Mas, mesmo assim, o BTC teve um desempenho ruim nessa guerra.
O bitcoin apresentou volatilidade, seguindo o padrão de risco global. Nos momentos de pico das tensões — principalmente após a ação militar de Washington contra alvos nucleares iranianos — o BTC despencou para US$ 98.000, superando a barreira psicológica dos US$ 100.000. A queda foi rápida e intensa, chegando a 9% abaixo dos picos recentes.
Por que isso aconteceu?
Uma das principais razões é o comportamento dos próprios investidores, que ainda tratam o bitcoin como ativo de risco. Em vez de enxergá-lo como proteção, muitos preferem liquidar posições em cripto quando o clima global esquenta. Essa fuga aumenta a volatilidade em momentos de crise — mas ela não é gerada pelo BTC em si, e sim pela percepção instável que ainda domina o mercado.
Ou seja: o problema não está nas propriedades da criptomoeda, mas na confiança. Enquanto boa parte dos grandes players continuar usando bitcoin para especular e não para preservar valor, ele vai seguir se movendo como uma ação de tecnologia — e não como um porto seguro.
Para efeitos de comparação, durante a queda do bitcoin na guerra Irã e Israel, as ações de tecnologia — “Magnificent Seven” (Apple, Microsoft, Amazon, Nvidia, Alphabet (Google), Meta e Tesla) caíram 0,5%.
Essa correlação mostra que o BTC não opera isolado — ele integra um movimento de risco global (tanto na queda quanto na recuperação).
Além disso, o bitcoin ainda carrega o peso da juventude. Com apenas 16 anos de existência, sua trajetória foi marcada por ciclos de euforia, correções abruptas, ataques regulatórios e mudanças drásticas no perfil dos investidores. Tudo isso contribui para uma percepção de instabilidade — não necessariamente pela tecnologia em si, mas pelo comportamento ao redor dela.
Enquanto isso, o ouro acumula milênios de confiança como reserva de valor em diferentes civilizações. Já o dólar, mesmo sem lastro físico, consolidou seu papel ao longo do século XX como referência global de liquidez. Diante desse contraste, é natural que parte do mercado ainda hesite em recorrer ao bitcoin como escudo financeiro quando o mundo entra em crise. O ativo ainda está escrevendo sua história — e, por enquanto, ela é mais associada à inovação do que à proteção.
Mas isso está mudando
Apesar da resistência do mercado tradicional, alguns sinais mostram que a percepção sobre o bitcoin está evoluindo. A Strategy de Michael Saylor, por exemplo, segue como símbolo dessa virada, com mais de 592 mil BTC no balanço. Mas ela está longe de ser um caso isolado: as 100 maiores empresas do mundo somam juntas 834 mil bitcoins.
Essas posições vão muito além do discurso especulativo. São alocações estratégicas — seja como proteção contra desvalorização cambial, seja como posicionamento de longo prazo em um ativo escasso e global.
A chegada dos ETFs spot nos EUA também facilitou esse movimento, abrindo caminho para que investidores institucionais acessem o BTC com menos fricção e mais segurança regulatória. Segundo o Bitbo, os 12 principais fundos de bitcoin somam atualmente 1.239.460 BTC, ou seja, 5,9% de todo o suprimento da criptomoeda primária (21 milhões).
Além disso, El Salvador não está mais sozinho. Outros países passaram a adotar estratégias com o bitcoin como alternativa diante de instabilidades econômicas, cambiais ou geopolíticas.
O Butão, por exemplo, investiu silenciosamente em mineração de BTC e realizou acordos com empresas do mercado para desenvolver sua infraestrutura energética.
A confiança ainda precisa ser construída
Ainda não dá para dizer que o bitcoin já age como uma reserva de valor automática. Ele não reage como o ouro quando as bombas caem. Mas talvez essa expectativa esteja mal colocada. O problema não é o ativo — é o comportamento de quem o movimenta.
O BTC não falha por cair durante crises; ele apenas responde à lógica de um mercado que ainda o trata como aposta, e não como proteção. Afinal, seus fundamentos não mudam.
Enquanto investidores continuarem vendendo no pânico e comprando na euforia, ele vai oscilar como qualquer ativo especulativo. A tecnologia está pronta. O que falta é maturidade do uso.
E é aí que entra o tempo. A confiança — real, sólida, que transforma um código em porto seguro — não nasce em ciclos de hype. Ela se constrói na repetição, na resiliência e, acima de tudo, na escolha consciente de quem decide permanecer.