Constitucionalidade da limitação das saídas temporárias de presos

A Lei Federal nº 14.843, de 11 de abril de 2024 — fruto do Projeto de Lei nº 2.253 de 2022 — alterou a Lei de Execução Penal, Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, restringindo a concessão do benefício da saída temporária de presos, comumente chamada de “saidinha”. Com a promulgação na nova lei, foi revogada a autorização de saída temporária do estabelecimento prisional aos condenados que cumprem pena no regime semiaberto para visitar a família ou para participar de atividades que concorram ao retorno do convívio social (artigo 122, inciso I e III, Lei 7210/1984).

Antônio Cruz/Agência Brasil

Todavia, ainda durante o processo legislativo, o presidente da República, na mensagem enviada ao Senado, vetou o artigo 2º do Projeto de Lei nº 2.253 de 2022 por reputá-la inconstitucional, sob o argumento de que a revogação do direito à visita familiar na saída temporária restringiria o direito do apenado ao convívio familiar, enfraquecendo os laços afetivo-familiares, pois estes já restam afetados pela própria situação de aprisionamento, violando o artigo 226 da Constituição. [1]

O veto parcial aposto pelo presidente da República na Mensagem nº 144 de 2024 foi derrubado pelo Congresso Nacional na sessão de 28 de maio de 2024, sendo mantida a revogação das saídas temporárias de presos para visitar a família ou participar de atividades favorecedoras do convívio social. [2]

Como vê, reside controvérsia no tocante à revogação ou manutenção da saída temporária de presos para visitar os seus familiares, visto que a proibição decorreu de projeto de lei dos parlamentares, sendo aprovado pelo próprio Congresso Nacional. Todavia, o chefe do Poder Executivo da União — como representante da nação — entende pela indispensabilidade do benefício para a ressocialização dos apenados, havendo divergência de natureza política.

Não bastasse isso, na perspectiva jurídica o assunto também não é pacífico, pois a Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7663 perante o Supremo Tribunal Federal em face da revogação dos aludidos benefícios constantes nos incisos I e III do artigo 122 da Lei 7.210/1984. Na ocasião, a Advocacia-Geral da União manifestou-se contrariamente às inovações previstas na Lei nº 14.843/2024, pugnando pela inconstitucionalidade de parte de lei que limitou a concessão de saída temporária de reclusos sob o argumento do respeito ao princípio da individualização da pena e da convivência familiar. [3]

Igualmente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7665, questionando a revogação das saídas temporárias pela Lei nº 14.843/2024, sob a alegação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da individualização da pena, da vedação ao retrocesso em matéria de direitos fundamentais, etc. [4]

Sem embargo, é constitucional a limitação da saída temporária dos presos — inovação oriunda da Lei nº 14.843 de 2024 —, podendo o Congresso Nacional dispor a respeito, pois decorre da liberdade de conformação do legislador. De fato, a Constituição assegura a individualização da pena, nos seguintes termos: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos” (artigo 5º, inciso XLVI, CF de 1988).

Esse dispositivo possui pontos importantes que devem ser destacados. Primeiro: a Carta Magna delegou ao Congresso a atribuição de regular a individualização da pena, de modo que este possui liberdade de como esta será efetivada, de acordo com a política adotada. Segundo: a individualização da pena dependerá da forma estabelecida na norma jurídica, ou seja, variará de acordo com o disciplinamento na lei ordinária, sendo este o veículo normativo adequado para dispor sobre o tema. Terceiro: outras penas poderão ser criadas, visto que o rol previsto na Constituição é exemplificativo, e não taxativo. Ou seja, a forma de cumprimento da sanção penal poderá prever outras modalidades punitivas, havendo liberdade por parte do legislador, bastando que sejam observados postulados básicos consagrados constitucionalmente, a exemplo do respeito à integridade física e moral do preso, a dignidade humana, etc.

Congresso pode estabelecer individualização da pena

Assim, o poder constituinte originário, ao redigir a Constituição, concedeu ao Congresso a faculdade de estabelecer a individualização da pena, sendo consagrada, nessa temática, a liberdade de conformação do legislador. Isso ocorre porque os membros do Poder Legislativo são os representantes do povo — oriundos dos mais diversos seguimentos sociais —, sendo democraticamente eleitos, de modo que possuem legitimidade política e expressam a vontade soberana do Estado (artigo 1º, parágrafo único, CF/1988). Portanto, o Poder Legislativo — designadamente a Câmara dos Deputados e o Senado —, ao revogar o benefício da saída temporária de presos em hipóteses que antes eram permitidas, nada mais fez do que exercer o seu múnus institucional, isto é, a sua atribuição política e normativa de regular temas de interesse da nação brasileira.

Outrossim, considerando que a Constituição atribuiu à lei a individualização da pena, afigura-se importante tecer alguns comentários sobre o significado dessa expressão. O vocábulo “individualização” refere-se ao ato de individualizar, que significa distinguir, caracterizar ou particularizar algo, tornando-o individual. [5] Por se tratar de estabelecer uma distinção, o ato de individualizar a pena pressupõe a separação de tratamento entre condutas e a respectiva sanção, em respeito à proporcionalidade. Consequentemente, quanto mais grave o delito cometido, maior será a pena ou o seu rigor.

Registre-se que a individualização da pena é feita pelos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. A primeira individualização é realizada pelo legislador no ato de criação da lei, visto que esta estabelecerá os marcos penais para os diversos crimes de acordo com a sua gravidade, vinculando o juiz na quantidade da pena, além de elencar o tipo de cumprimento e seu regime, exemplo de ser de reclusão ou detenção, fechado, semiaberto ou aberto, se o crime admite fiança ou se é inafiançável, etc. A esse fenômeno designa-se “individualização legal da pena” em virtude de essa fase ser realizada pelo legislador no estabelecimento do marco penal genérico de cada delito, predominando os critérios de prevenção geral e proporcionalidade para aquilo que seja considerado necessário e suficiente para a intimidação, ou seja, para evitar que as pessoas cometam os delitos em questão. [6]

Spacca

O segundo momento de individualização da pena é realizado pelo juiz, na fixação de acordo com a previsão do marco penal da lei. Nessa fase, recai a determinação qualitativa ou a eleição do grau da sanção que tem lugar conforme a norma jurídica — a exemplo da substituição por penas alternativas —, e a determinação quantitativa da pena, consistente na fixação da quantidade a ser cumprida pelo réu. A esse fenômeno denomina-se “individualização judicial” da pena. Finalmente, o terceiro momento de individualização da pena é feito pela administração pública, a que se denomina “individualização executiva” ou “individualização penitenciária”, que se refere ao cumprimento da pena no estabelecimento prisional, [7] a exemplo do ato de classificação dos condenados por comissão técnica, que elaborará programa individualizado da pena ao condenado ou preso provisório (artigos 5º ao 7º, Lei 7.210/1984). Além disso, esse momento de individualização, por ser uma fase que se desenvolve no ambiente penitenciário, permite que a administração observe e avalie o apenado, propiciando conhecer o tratamento mais conveniente para sua readaptação social, ou seja, o tratamento para a sua ressocialização. [8]

Assim, conforme previsto no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição, o Poder Legislativo exerce a individualização da pena em seu caráter inicial e de maneira genérica, estabelecendo as balizas normativas, às quais estarão submetidos os demais Poderes (quantidade da pena, regime de execução, etc.) Ademais, o Poder Legislativo tem liberdade para dispor sobre a criação e a extinção de benefícios penais — a exemplo da limitação da saída temporária —, pois decorre da sua atribuição de individualizar a pena, bastando que Congresso edite lei acerca da matéria, sendo esta atividade manifestação da individualização legal supramencionada.

Além disso, o benefício da saída temporária de reclusos para visitar familiares existiu de 1984 até 2024 — com a edição da Lei nº 7.210 em 11 de julho de 1984 até a Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024 —, perfazendo quase 40 anos de vigência, mas não significa que tal prerrogativa deva existir perpetuamente, pois decorre da continuidade da previsão em lei, sendo esta previsão que a torna um direito, ou seja, uma faculdade exigível juridicamente. Desse modo, se não houver mais norma legal prevendo tal instituto nas hipóteses elencadas — como ocorreu com a edição da Lei Federal nº 14.843/2024 —, este deixa de existir no mundo jurídico, não sendo mais um direito.

Assim, o Congresso pode legislar sobre direito penal e revogar benefícios antes existentes, não havendo garantia de imutabilidade em matéria de política criminal, pois esta é suscetível a mudanças, conforme a compreensão que se tem sobre o assunto e sobre a medida que se reputar adequada para tanto. Repita-se que esta liberdade legisladora é constitucional, pois a sociedade se modifica, e os deputados e senadores representam a vontade do povo, além de que não se pode pretender fossilizar os dispositivos da legislação ordinária, nomeadamente a lei de execução penal — Lei nº 7.210 de 1984 —, de modo que os parlamentares podem modificá-la com o decorrer do tempo, e o fez com a edição da Lei nº 14.843 de 2024.

Saída temporária permanece válida

Logicamente, o benefício da saída temporária do condenado para visitar a família e a participação em atividades que concorram ao convívio social permanece válido aos presos que já titularizavam esse direito antes da promulgação da nova lei, em respeito ao direito adquirido e à irretroatividade da lei penal mais gravosa, mas tal vantagem não se estende aos novos ingressos do sistema prisional (artigo 5º, inciso XL, CF/1988).

Ademais, em virtude da capacidade de o Poder Legislativo estabelecer a “individualização legal” da pena por intermédio da lei, aliado ainda à sua liberdade de conformação, outros benefícios penais podem ser criados, a depender do interesse da política criminal então escolhida. Exemplo, poderia ser inventada a figura do “recesso carcerário”, consistente na autorização para saída temporária do estabelecimento prisional por 30 dias consecutivos aos presos no regime semiaberto para que ficassem recolhidos em suas residências, quando fossem condenados por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e desde que tivesse bom comportamento carcerário.

Tal benefício não existe atualmente, mas poderia ser criado caso o Congresso Nacional entendesse adequado e oportuno. Tal ilustração não se trata de mera conjectura, pois certos benefícios, que não eram previstos na redação originária da Lei de Execução Penal e no Código de Processo Penal hoje existem, a exemplo da monitoração eletrônica (criada pela Lei nº 12.258 de 2010) e a prisão domiciliar (criada pela Lei nº 5.256 de 1967 e regida atualmente pela Lei nº 12.403 de 2011). Portanto, benefícios penais podem ser criados e revogados pelo Poder Legislativo, que é o órgão competente constitucionalmente para dispor sobre a individualização da pena na ótica normativa, isto é, no disciplinamento legal da pena.

Ainda no que tange à alegada inconstitucionalidade da revogação da saída temporária do preso para visitar a família, por supostamente prejudicar os laços familiares, tal argumento não procede. Isso porque a Lei nº 14.843 de 2024 apenas não mais prevê a saída temporária do estabelecimento prisional pelo próprio preso, sem vigilância direta, para visitar a sua família, mas lhe é garantida a visita dos seus parentes no respectivo estabelecimento prisional.

Ou seja, com a revogação, o preso não pode, por si só, sair de onde está recluso para visitar os seus familiares, mas estes poderão ir pessoalmente no estabelecimento a fim de visita-lo, de modo que continuam preservados os laços afetivos. Conforme dispõe o artigo 41, inciso X, da Lei de Execução Penal, constitui direito do preso a visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados. Assim, o direito à proteção da família mantém-se preservado mesmo com a revogação da saída temporária do preso decorrente da Lei nº 14.843 de 2024, pois as pessoas que lhe sejam próximas poderão visitá-lo no estabelecimento prisional em datas previstas pela administração carcerária.

Portanto, é constitucional a revogação da saída temporária do preso para visitar sua família ou para participar de atividades que concorram ao convívio social, designadamente o benefício da “saidinha”, decorrente da Lei nº 14.843/2024, pois resulta da individualização legal da pena feita pelo Poder Legislativo, bem como da sua liberdade de conformação conferida pela Carta Magna, que lhe faculta criar e extinguir benefícios penais, conforme a política criminal adotada.

 


[1] BRASIL. Mensagem nº 144, de 11 de abril de 2024. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Msg/Vep/VEP-144-24.htm

[2] SENADO FEDERAL. Senado Notícias. Pela segunda vez, Congresso acaba com saídas temporárias de presos em feriados. Agência Senado. 28-05-2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/28/pela-segunda-vez-congresso-acaba-com-saidas-temporarias-de-presos-em-feriados

[3] AGU. Advocacia-Geral da União. AGU pede ao STF declaração de inconstitucionalidade de parte da lei que limitou a saída temporária de pessoas privadas de liberdade. Notícias. Publicada em: 22-08-2024. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-pede-ao-stf-declaracao-de-inconstitucionalidade-de-parte-da-lei-que-limitou-a-saida-temporaria-de-pessoas-privadas-de-liberdade

[4] STF. Supremo Tribunal Federal. OAB questiona fim de saídas temporárias a presos em regime semiaberto. Notícias. Publicada em 05-06-2024. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=545181&ori=1

[5] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 1097.

[6] MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General. 8ª ed. Tirant Lo-Blanch: Valencia, 2010, p. 532-533.

[7] MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General. 8ª ed. Tirant Lo-Blanch: Valencia, 2010, p. 533-534.

[8] CUELLO CALÓN, Eugenio. La Moderna Penología. Tomo I. Barcelona: Bosch, 1958, p. 45.



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