Filho de pais sírios, o britânico Mustafa Suleyman é um dos principais nomes do momento atual da inteligência artificia (IA). Em 2010, ele fundou em Londres com o amigo Demis Hassabis a DeepMind, startup de IA comprada pelo Google quatro anos mais tarde por US$ 600 milhões. Uma década e meia depois, a dupla se dividiu para travar uma das maiores disputas do setor tecnológico atual. De um lado, Hassabis comanda a divisão de IA do próprio Google, enquanto Suleyman comanda a divisão de IA da Microsoft.
Enquanto Hassabis, que no ano passado ganhou o prêmio Nobel de Química por conta de uma IA capaz de prever estruturas de proteínas, sempre buscou o desenvolvimento da inteligência artificial geral (AGI, na sigla em inglês), Suleyman buscava usos mais imediatos e palpáveis da tecnologia. Na Universidade de Oxford, ele estudou filosofia e teologia, o que o ajudou a se tornar uma das principais vozes no uso ético da IA.
Em 2022, ele deixou o Google para formar a startup Inflection AI, também focada em grandes modelos de linguagem (LLMs), e aumentou o volume sobre cenários desastrosos para o uso de IA — muitos deles estão descritos no livro A próxima onda: Inteligência artificial, poder e o maior dilema do século 21.
No ano passado, a Microsoft comprou a Inflection por US$ 650 milhões com o objetivo principal de ter Suleyman no comando de sua divisão de IA. Assim, o pesquisador amenizou o discurso mais distópico em relação à tecnologia e adotou uma visão mais otimista sobre as aplicações da tecnologia. Ele conversou com o Estadão para o especial Tecnologia em Transformação, o quarto capítulo da série de especiais temáticos que o jornal publicará até o fim de 2025, dentro das celebrações de seus 150 anos.
Na entrevista, Suleyman apontou os rumos da tecnologia — ele acredita que estamos longe do pico tecnológico dos LLMs. E também expressou uma preocupação recente com os avanços no setor: o surgimento de relacionamentos íntimos entre humanos e máquinas. Veja os melhores momentos abaixo.
Qual a diferença entre o Mustafa Suleyman da DeepMind, da Inflection AI e da Microsoft? O que mudou, ou não, ao longo dos anos e experiências?
Estou mais concentrado do que nunca em como a IA pode melhorar a vida cotidiana. Para mim, trata-se de usar a IA para ajudar as pessoas a acordarem e sentirem um pouco de alívio. Demos alguns passos grandes e significativos para estabelecer nossa estratégia de longo prazo para a IA para o consumidor. Trata-se de passar de chatbots e ferramentas de software para um verdadeiro companheiro de IA. Com nossos anúncios recentes, estamos possibilitando um relacionamento mais profundo com sua IA, pois ela o conhece, lembra-se de você, tomará medidas para você e é uma companhia confiável. É essa visão que tem se tornado cada vez mais poderosa ao longo dos anos e que estou totalmente comprometido em concretizar.
No livro ‘A próxima onda’ o sr. ilustra diversos cenários assustadores para o futuro. Alguma dessas visões mudou?
Toda tecnologia poderosa traz grandes oportunidades e riscos ao mesmo tempo. No livro, eu me aprofundei em muitos desses riscos – e também em propostas para superá-los. Todas elas continuam válidas. No entanto, o que também quero fazer é equilibrar mais claramente esses riscos com as oportunidades. A IA pode nos ajudar a enfrentar uma série de desafios extremos, desde a superação de economias estagnadas e mudanças climáticas até a produção de melhores cuidados com a saúde e vidas menos estressantes.
‘A IA pode nos ajudar a enfrentar desafios extremos, das mudanças climáticas a ter vidas menos estressantes’, diz Suleyman Foto: MICROSOFT
Qual é o seu maior medo em relação ao futuro da IA?
Acho que uma das coisas com as quais você deve ter muito cuidado é como as pessoas formam conexões com esses modelos ao longo do tempo. Certamente já vi outras startups em que as pessoas podem ter um relacionamento muito íntimo e duradouro, até mesmo romântico. Não é isso que estamos fazendo, e não é algo que faremos no futuro.
O sr. acredita que haverá uma convergência entre neurociência e IA no futuro próximo? E como isso pode acontecer?
Há muito tempo existe uma conexão aqui – muitos dos avanços na ciência da IA foram inspirados pela neurociência. Não é coincidência o fato de a IA e o cérebro serem construídos com base em coisas que chamamos de redes neurais. É mais difícil e controverso dizer se haverá uma convergência. O que provavelmente será verdade é que nossa compreensão do cérebro continuará a inspirar novos avanços em IA.
Como o sr. enxerga a evolução da IA nos próximos 5/10/50 anos?
Algumas pessoas temem que a IA diminua o que nos torna únicos como seres humanos. O trabalho da minha vida é garantir que ela faça exatamente o oposto. Nós escolhemos o que criamos e, na Microsoft AI, quero que criemos tecnologias que capacitem e elevem radicalmente as pessoas. Nossa tarefa é garantir que a IA sempre enriqueça a vida das pessoas e fortaleça nossos vínculos com os outros, ao mesmo tempo em que apoia nossa singularidade e nossa humanidade infinitamente complexa. O que devemos esperar é uma nova era de tecnologia que não apenas “resolva problemas”, mas que esteja lá para apoiar, ensinar e ajudar. Nesse sentido, o Copilot é realmente diferente da última onda da web e dos dispositivos móveis. Este é o início de uma mudança fundamental em que nossas ferramentas trabalham para nós de uma forma nunca vista antes. É uma longa jornada que levará anos.
Uma série de grandes empresas passou a falar de inteligência artificial geral (AGI). A humanidade precisa disso?
Na Microsoft não estamos focados em tentar alcançar a AGI. Nosso desenvolvimento de IA está centrado em ampliar, aumentar e auxiliar a produtividade e a capacidade humanas. Estamos criando plataformas e ferramentas que, em vez de substituir o esforço humano, podem ajudar os seres humanos com o trabalho cognitivo, com sua carga mental e emocional diária. Isso não significa que elas não sejam poderosas – elas são – mas o foco é um pouco diferente.
O que devemos esperar é uma nova era de tecnologia que não apenas ‘resolva problemas’, mas que esteja lá para apoiar, ensinar e ajudar
Fala-se muito de agentes de IA hoje em dia. O que os torna tão especiais e não apenas uma ‘buzzword’?
Os agentes marcam o momento em que a IA passa de apenas dizer coisas para realmente fazê-las. Na Microsoft, imaginamos um mundo no qual os agentes operam em contextos individuais, organizacionais, de equipe e de negócios de ponta a ponta. Esse é um mundo em que agentes de IA seguros, protegidos e capazes tomam decisões e executam tarefas em nome de usuários ou organizações. Na prática, estamos demonstrando as primeiras fases disso. Com o novo aplicativo Copilot para Windows, por exemplo, seu computador finalmente trabalha em seu nome e pode ajudar a analisar, oferecer insights ou responder às suas perguntas, orientando-o em voz alta.
Os LLMs atingiram um pico tecnológico ou ainda são capazes de evoluir?
Ainda há um longo caminho a percorrer. Fui cofundador da DeepMind em 2010 e comecei a trabalhar com AGI há quase 15 anos. Estou trabalhando nisso há muito tempo e tenho visto esses modelos ficarem maiores, melhores e mais fortes. E, a cada ano, conseguimos lançar um novo modelo que é mais preciso, com menos alucinações, que tem mais recursos. Existe uma progressão constante de melhorias e devemos esperar que isso continue.
Os modelos de IA viraram commodities?
Os modelos são a base de tudo, mas é certamente correto dizer que eles são o início, e não o fim, da inovação em IA. O que é surpreendente neste momento é que muitas empresas, inclusive muitas startups, estão tendo acesso aos mesmos modelos de linguagem incríveis e poderosos. A questão é: como transformar essa matéria-prima em ouro? É aqui que a atenção ao tom, ao estilo, ao arco da conectividade e ao relacionamento com seu companheiro de IA será um grande diferencial.
O custo de tentar continuar evoluindo esses modelos vale a pena?
A maioria de nós na IA está pensando a longo prazo. Nos últimos anos, fizemos investimentos significativos em infraestrutura para garantir que estejamos bem posicionados para atender aos sinais de curto e longo prazo que vemos. Continuamos a crescer em um ritmo recorde para atender à demanda dos clientes e isso explica os grandes compromissos que estamos assumindo, mas ainda mais o fato de podermos ver para onde isso está indo. Estamos construindo o futuro de forma proativa. Planejamos a capacidade do nosso data center com anos de antecedência para garantir que tenhamos infraestrutura suficiente. À medida que a demanda por IA continua a crescer e a presença de nosso data center continua a se expandir, respondemos dinamicamente.
A IA pode entrar em um novo inverno de avanços e investimentos?
Acho que isso é improvável. Há apenas dez anos, esses modelos não conseguiam nem mesmo gerar uma única frase e agora podemos ter conversas longas fluentes e quase perfeitas com uma IA. Quem poderia imaginar? Veremos como as coisas se desenrolarão nos próximos dez anos, mas estou otimista quanto ao rumo que a IA está tomando.
Há apenas dez anos, esses modelos não conseguiam nem mesmo gerar uma única frase e agora podemos ter conversas longas fluentes e quase perfeitas com uma IA. Quem poderia imaginar?
Como evitar que a IA seja um concentrador de renda ainda mais poderoso?
A IA está revolucionando o trabalho, e os agentes acelerarão essas mudanças. Algumas funções evoluirão e novos empregos serão criados. A internet transformou o varejo, criando sete vezes mais empregos do que eliminou em menos de uma década, com web designers, profissionais de marketing digital, gerentes de mídia social e analistas de dados. Isso reflete o impacto de inovações como a prensa, a máquina de escrever e o PC. À medida que a IA continua a ser implementada, precisaremos monitorá-la de perto e considerar cuidadosamente quaisquer respostas.
Como garantir que a IA seja usada de forma ética em escala global?
Quando você cria tecnologias que podem mudar o mundo, deve garantir que a tecnologia seja usada de forma responsável. Nosso trabalho é orientado por um conjunto básico de princípios: justiça, confiabilidade e segurança, privacidade e segurança, inclusão, transparência e responsabilidade. Esses princípios são fundamentais para a forma como desenvolvemos e implantamos a IA que terá um impacto positivo na sociedade. Adotamos uma abordagem interempresarial por meio de pesquisa de ponta, dos melhores sistemas de engenharia e da excelência em políticas e governança. Também criamos várias ferramentas e recursos para ajudar nossos clientes a usar a IA de forma responsável. Nosso relatório de transparência de IA fornece informações sobre os usos pretendidos, os recursos e as limitações de nosso serviço de plataforma de IA. Nossa avaliação de impacto ajuda os clientes a pensar em uma série de impactos que a implementação da IA pode causar. As ferramentas disponíveis ajudam os clientes a identificar, diagnosticar e mitigar possíveis erros e limitações dos sistemas de IA.
Qual o limite ético da coleta de dados para treinar modelos de IA?
A privacidade e o controle do usuário são fundamentais para nossa abordagem com o Copilot. Todos podem escolher, todos têm poder aqui. Os usuários têm controle sobre o conteúdo que é armazenado, se as interações são usadas para treinamento de modelos e se as conversas afetam a personalização do Copilot. Não treinamos com dados de nossos clientes comerciais nem com dados de pessoas conectadas a uma conta organizacional. Também não treinamos em dados de assinaturas pessoais ou familiares do Microsoft 365 ou em dados de qualquer pessoa que não esteja conectada a uma conta Microsoft (MSA). Usamos dados anônimos de consumidores do Bing, MSN, Copilot e interações com anúncios em determinados países para treinamento de IA. Mas, principalmente, se você estiver conectado a uma conta da Microsoft, poderá controlar se esses dados serão usados para treinar os modelos de IA generativos da Microsoft, optando por não participar. Isso exclui o uso de dados de consumidores passados, presentes e futuros para o treinamento desses modelos de IA, a menos que você opte por voltar a usá-los. Essa configuração está disponível na web, no desktop e em dispositivos móveis.
Qual deve ser o papel das big techs e dos governos na definição do futuro da IA?
Essa é uma parceria vital, que nós apoiamos. Uma boa regulamentação é absolutamente essencial e estamos ansiosos para trabalhar com governos de todo o mundo para garantir que esta seja uma revolução tecnológica que funcione para todos.