
Quando você pensa em arte, o que vem à cabeça? Alguns podem responder pinturas, telas pintadas a óleo ou aquarela. Alguns pensam em fotografias, outros em escultura, performance, música e teatro, mas, independentemente da forma ou método, uma coisa é certa: você certamente pensará em expressões humanas.
Os questionamentos do que é arte são tão antigos quanto seu próprio conceito. Na Grécia Antiga, Platão achava que a arte era uma cópia imperfeita da realidade e, por isso, de pouco valor.
Durante o Renascimento e ascensão do Iluminismo, Immanuel Kant defendia que a arte é julgada pelo que faz sentir, não pelo que representa. Já movimentos como Dadaísmo e Surrealismo desafiavam a ideia de que a arte não precisava ser bela ou técnica.

Foto: Divulgação/Adobestock
Imagem de apoio ilustrativo: estátua do filósofo Platão em Atenas, na Grécia
Em todas as épocas, a arte foi moldada por debates sobre imitação, beleza, expressão, provocação e construção social. Com o surgimento de novas tecnologias e com a expansão dos sentidos e saberes humanos, os limites entre tradição e inovação tornaram-se o coração das discussões artística.
Quando a
Inteligencia Artificial Generativa
“Segundo Artur de Oliveira da Rocha Franco, mestre e doutorando em Ciência da Computação e professor adjunto da Universidade Federal do Ceará (UFC), de forma geral, o termo IA é uma expressão muito ampla. No entanto, é importante distinguir diferentes categorias por terem implicações distintas, especialmente no contexto do valor do trabalho artístico e da regulamentação.
Uma diferenciação importante é entre modelos de larga escala, também chamados de aprendizado profundo, e modelos de IA mais leves. Os debates sobre a arte focam nos modelos de larga escala, que geralmente envolvem um grande volume de dados e são capazes de aprender.
Dentro do aprendizado profundo, existem modelos generativos, que têm a capacidade de gerar conteúdo como imagens, texto e vídeos. Estes modelos generativos são frequentemente o foco das discussões sobre o impacto da IA no mercado criativo.
Por outro lado, existem modelos de IA mais leves que não se baseiam necessariamente no trabalho de terceiros para operar. Estes modelos podem ser mais simples e ter um impacto diferente.
Um exemplo de IA que não é necessariamente de aprendizado profundo, mas é um recurso recorrente na área de jogos (na parte visual), é a interpolação usada em animação para preencher quadros de movimento.
Além dos modelos generativos, há também modelos de aprendizado profundo que reconhecem ou classificam informações, como identificar o conteúdo de uma foto. Estes modelos não geram conteúdo novo, mas analisam e interpretam dados existentes.
Os modelos de aprendizado profundo, incluindo os generativos, aprendem a partir de um grande volume de dados reais, que normalmente são produções humanas. O modelo gerado é, portanto, fruto do esforço humano que forneceu os dados para o aprendizado.
É crucial entender essa distinção entre os tipos de IA para compreender melhor os problemas relacionados ao mercado artístico, à criatividade e à regulamentação.
Os modelos de larga escala e os modelos generativos levantam questões específicas sobre o uso de trabalho alheio e o potencial impacto na desvalorização do trabalho humano.
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de imagem começou a se popularizar, em 2021, ela reascendeu um importante debate sobre ética e autoria. Buscar formas de sinalizar conteúdos gerados por IA tornou-se o foco nas políticas reguladoras.
Regulação insuficiente que se defasou em um período de quatro anos. Para além da dicotomia de usar ou não a IA, questionamentos sobre alimentação de sistemas e proteção de dados entraram no pacote dos debates.

ChatGPT e Studio Ghibli: as duas faces de um embate além da arte
Famoso por manter um estilo sensível e artesanal por décadas, o estúdio japonês de animação Ghibli construiu um portfólio amplo e único em seu quase meio século de existência.
Responsável por criar obras cativantes para todas as idades, Hayao Miyazaki — cofundador e um dos principais nomes do Studio Ghibli — declarou, em 2016, estar “totalmente enojado” ao assistir a um vídeo gerado por inteligência artificial.
À época, afirmou que jamais desejaria incorporar esse tipo de tecnologia ao seu trabalho, classificando-a como “um insulto à própria vida”. Sua postura firme e inflexível o consagrou como o maior defensor da animação tradicional e inteiramente manual.
Talvez por conta de seus ideais tão fortes sobre o árduo caminho criativo e o valor do processo artesanal, o uso da IA para gerar imagens no estilo Ghibli tenha causado tanta indignação entre fãs da arte de Miyazaki.
Afinal, entre tantas formas possíveis de demonstrar eficiência, a IA foi instruída a replicar um traço que representa muito mais do que um estilo visual, representa o humano.
Replicou e lucrou. O ChatGPT conseguiu um milhão de novos usuários em uma hora em meio ao movimento viral de criação de imagens no estilo Ghibli, segundo Sam Altman, presidente e fundador da OpenAI.
A função de gerar imagens em estilo de animação a partir de fotos reais é a mais recente ferramenta integrada ao Chatbot. A popularidade foi tão expressiva que até mesmo contas oficiais, como a da Casa Branca, compartilharam suas versões em desenho.
O surgimento da novidade movimentou as redes sociais por todos os lados e, antes de estacionar nas discussões sobre criação de arte por IA, acabou chegando no tema dos direitos autorais.

Entre o legal e o criativo
Apesar do reconhecimento, por parte da lei, dos artistas e de empresas criativas, da necessidade de uma regulamentação mais atual das IAs, ainda não há uma definição clara de como essa regulamentação deve ser conduzida.
O debate mais significativo sobre o uso de obras protegidas por direitos autorais para o treinamento de inteligências artificiais está ligado à definição incerta do “uso justo”.

Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal
Lara Forte é sócia da Orenda e advogada especialista em propriedade intelectual
Uso justo — ou fair use, em inglês — é um princípio legal que permite o uso limitado de materiais protegidos por direitos autorais sem precisar de permissão do autor, em certas circunstâncias, especialmente quando esse uso é considerado benéfico para a sociedade.
“Nos Estados Unidos, principalmente, existe um lobby muito forte para que o uso de obras protegidas por direitos autorais no treinamento de IAs seja considerado uso justo”, diz Lara Forte, sócia da Orenda e advogada especialista em propriedade intelectual.
Ela explica que as grandes empresas de IA argumentam a favor do uso das obras em prol da evolução tecnológica e da democratização da arte. Já movimentos contrários alegam benefício comercial indevido para empresas de IA.
Sam Altman, fundador do ChatGPT, que comemorou em suas redes sociais a adesão de mais um milhão de usuários pagos, é abertamente um defensor da democratização que ele chama de “benefício líquido” para a sociedade.
Lara explica que, nas mais de duas décadas da criação da Lei de Proteção de Direitos Autorais, muita coisa mudou. A humanidade passou por saltos tecnológicos expressivos, não somente relacionados às ferramentas, mas à própria maneira de reproduzir e consumir conteúdos.
Novos hábitos de consumo somados às novas tecnologias acentuaram as brechas do que a lei deixa de proteger. Casos legais como o da Thomson Reuters contra a
Ross Intelligence
“O caso envolvendo a plataforma de inteligência artificial Ross Intelligence e a empresa Thomson Reuters iniciou em maio de 2020, quando a Thomson Reuters processou a Ross por suposta violação de direitos autorais.
A acusação era de que a Ross utilizou indevidamente conteúdos da plataforma jurídica Westlaw, da Thomson Reuters, para treinar seu sistema de IA sem autorização.
Conforme as acusações, os dados incluíam resumos e sumários de casos produzidos por pessoas que estudavam os casos, sendo, portanto, material protegido por direitos autorais.
A Ross Intelligence acessou esse material protegido para alimentar e treinar sua inteligência artificial, que oferecia um serviço concorrente.
Em fevereiro de 2025, o juiz federal Stephanos Bibas, do Tribunal Distrital de Delaware, proferiu uma decisão favorável à Thomson Reuters. O tribunal entendeu que essa utilização não se enquadrava como uso justo.
Houve uma condenação de multa, estabelecendo um precedente importante contra o uso não autorizado de material protegido para treinar IA, especialmente quando há uma atividade comercial concorrente envolvida.
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e o processo do The New York Times contra a
OpenAI
“O The New York Times processou a OpenAI pelo uso indevido de suas matérias no treinamento do ChatGPT em setembro de 2023.
O jornal alegou que seus artigos foram utilizados, sem autorização, para treinar modelos de inteligência artificial como o ChatGPT, resultando em prejuízos financeiros significativos ao seu conteúdo jornalístico.
Além de também denunciar que, a depender do prompt, o Chat entregava textos completos retirados de publicações anteriores do veículo de comunicação.
A empresa jornalística argumenta que essa utilização causa prejuízo e configura um aproveitamento indevido sem autorização ou remuneração dos detentores dos direitos autorais.
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indicam a complexidade e os litígios em torno do uso de material protegido.
O que a lei de direitos autorais não protege
No caso do Studio Ghibli, que não moveu nenhuma ação judicial contra a OpenAI, não seria o traço característico que remete às obras do estúdio que levaria a uma vitória judicial, já que estilo não entra no escopo da proteção de direitos autorais.
O que poderia levar a empresa de animação a tomar medidas legais no futuro seria, na verdade, a utilização indevida da marca, protegida pelo registro marcário.

A arte da sensibilidade: humanos criam, maquinas geram
Diagnosticado com a Doença de Parkinson aos 29 anos, Bruno Sofia, designer, gamer e especialista no mundo nerd, precisou modificar sua rotina criativa após o surgimento de limitações físicas decorrentes da doença.
Impedido de realizar tarefas manuais detalhadas por longos períodos, ele passou a utilizar ferramenta de IA para auxiliar em seu trabalho. Bruno relata que a IA virou um tipo de “faz-tudo” e pontua características da IA que não anulam o trabalho humano por trás dos comandos.
“O criar para a IA depende da intervenção humana e mesmo assim tem limitações. Para a IA criar algo em um estilo específico, como o de Tarantino no cinema, seria necessário alimentá-la com toda a filmografia do artista e, mesmo assim, o resultado provavelmente seria uma fusão de recortes, sem a verdadeira distinção criativa”, explica.
Para Bruno, embora uma IA possa gerar materiais semelhantes, ela é incapaz de aprender ao nível individual de estilo e seguir linhas editoriais fixas e únicas. Ser crítico, criativo e autoral são características inerentes ao ser humano.
“Eu tenho uma visão menos apocalíptica sobre o impacto da IA no mercado de trabalho, acreditando que, embora muitas coisas mudem, a intervenção humana ainda será necessária em diversas etapas”, completa.
Assista ao trailer do filme Os dias de Sofia, disponível no OP+

IA generativa e mercado de trabalho: a quem interessa substituir o trabalho humano?
Arte leva tempo. Quando Hayao Miyazaki decidiu abandonar a aposentadoria para entregar ao público mais uma brilhante obra, ele levou sete anos para terminá-la. Como resultado de seu esforço, O Menino e a Garça ganhou o Oscar de melhor animação em 2024.
Toshio Suzuki, produtor do filme, revelou à emissora nacional japonesa NHK o tempo de produção e completou: “Foi verdadeiramente difícil de ser concluído”. Aproximadamente sete anos também foi o tempo necessário para A Viagem de Chihiro ficar pronto, o primeiro Oscar de Miyazaki, em 2003.
Podemos não perceber ao assistir tais produções, mas o mercado de animações no geral é caro e demorado. Cenas que duram segundos podem levar anos para serem concluídas e exigem o trabalho de muitas cabeças e mãos humanas.

Foto: Reprodução / Vidas ao Vendo – Hayao Miyazaki
A multidão representada na animação do filme Vidas ao Vento, do estúdio japonês Ghibli, levou cerca de um ano e três meses para ficar pronta. Ela aparece durante o filme por apenas quatro segundos.
Custos que as grandes empresas tentam reduzir e processos que tentam agilizar. “Não acredita que a IA desvalorize a arte em si, mas sim o valor do trabalho do artista”, comenta Artur de Oliveira da Rocha Franco, mestre e doutorando em Ciência da Computação e professor adjunto da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ele explica que a introdução da IA no mercado de trabalho pode levar à desvalorização do trabalho e à otimização de lucros com a redução de trabalhadores.
Áreas como o cinema e os jogos já incorporaram IAs e reduziram equipes, processo que pode ser agravado. No entanto, Artur não acredita que elas possam substituir a arte humana, mas precisam ser firmemente regulamentadas. Regulação que deve ser aplicada principalmente em grandes desenvolvedoras.
“A gente pode usar as IAs para gerar ideias, produzir protótipos ou tentar resolver alguns problemas que são difíceis de serem tratados. E ela pode, pontualmente, resolver bem ou não, e a gente tem que fazer do mesmo jeito ou só ajustar o que ela fez”, completa.
O professor informa que também é provável o surgimento de novas profissões, como um engenheiro de prompt, alguém que seria responsável por otimizar os comandos à IA e extrair os melhores resultados.
Daniel Monteiro, especialista em Inteligência Artificial e cibersegurança e diretor-executivo da Digital College, explica que a IA generativa cria conteúdo a partir de inspirações extraídas de dados disponíveis na internet.
Segundo o especialista, “isso não é muito diferente do que nós fazemos enquanto humanos. Artistas se inspiram em obras pré-existentes para criar algo novo”.
Áreas da indústria criativa que já utilizam IA
Para André Luiz Abrahão, coordenador do curso de Design Gráfico do Centro Universitário Estácio do Ceará, a IA não deve ser vista como uma ameaça direta, mas sim como uma ferramenta que pode encurtar processos criativos.
“A IA não substitui a capacidade de um designer de entender as necessidades do cliente, as tendências do mercado e criar soluções personalizadas. O que ela faz é oferecer um caminho mais rápido, mas sem substituir o pensamento estratégico e criativo humano”, pontua.
Se a vivência humana é um fator que falta para a IA ter “alma”, ser utilizada por nós a tornaria uma ferramenta completa. O surgimento das novas tecnologias e novas formas de consumo acabou com um antigo estigma de que a arte surgia de um dom divino.
“Ficou claro que a criação artística não surge de uma inspiração divina ou de um gênio isolado, mas de várias influências e apropriações que fazem parte do processo criativo”, completa Claudia Teixeira, professora pesquisadora vinculada ao Curso de Design e ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC.
Claudia defende que a chave é achar um equilíbrio: “proteger o trabalho dos artistas, mas também garantir que as ideias e inovações trazidas pela IA possam continuar fluindo”.

Uma trajetória de memória, identidade e pertencimento através da fotografia e da IA
Delfina Rocha é fotógrafa autodidata e teve o seu primeiro contato com a prática da fotografia quando montou um pequeno laboratório para revelar e copiar filmes em preto e branco, no início da década de 1980.
Trabalha com fotografia há aproximadamente 54 anos, abrangendo áreas da publicidade, de editoriais de moda e da fotografia de cena. Após 30 anos na área comercial, ela começou a se reaproximar da fotografia autoral e hoje tem uma exposição — Imagens em Trânsito: Memória, Fotografia e Identidade — no Espaço Cultural Unifor, fruto da sua reconexão.
A fotógrafa relata o processo de descoberta de sua descendência judaico-sefardita e o desejo que tinha de homenagear as mulheres de sua linhagem, muitas vezes ausentes dos registros genealógicos tradicionais.
“Sou um emaranhado das pessoas que vieram antes de mim. Para representar isso, construí uma máquina do tempo, pois queria homenagear as mulheres que me antecederam. Como não havia fotografias delas, já que a fotografia sequer existia na época, devido ao meu histórico se iniciar por volta de 1914 e se estender até hoje, precisei ficcionalizar esses rostos, e foi aí que usei a inteligência artificial”, relata.
Delfina explica que utilizou uma IA e alimentou a ferramenta com inúmeras fotos de diversos parentes de diferentes graus em várias idades para criar representações de como seriam seus antepassados.
Para conseguir os resultados que esperava, ela precisou aprender e testar diferentes comandos, além de buscar entender melhor sobre a tecnologia por trás da geração de uma imagem a partir de um banco de dados.
Para a artista, a incorporação de ferramentas digitais, incluindo a inteligência artificial, é um aspecto relevante do seu trabalho. “Eu me valho de qualquer ferramenta para criar. Não quero ficar mais engessada como fiquei em um momento da minha vida, por isso uso as tecnologias que estão disponíveis para criar”.
Delfina defende que a arte é mais que meros processos, é uma junção de conhecimentos e sentimentos para além da materialização. Para a fotografia, debates sobre as artes são perenes, sempre acontecem à medida que nós e nossas tecnologias evoluem, mas sempre caberá ao homem escolher como lidar e incorporar — ou não — o novo.