ela deu um basta e hoje vive daquilo que ama, criando joias em homenagem às deusas

“Muita gente deixa de viver por medo de mudar. Mas, enquanto você estiver respirando, por que continuar vivendo de um jeito que não quer mais? Vai ficar meio morta?” 

Foi assim que Lívia Müller começou a contar sua história, em entrevista ao Draft, depois de uma longa respirada para elaborar tudo. 

Paulistana, formada em Letras, na USP, ela abandonou o emprego em uma montadora, como professora de alemão, para morar em Brasília acompanhando o marido, funcionário público. 

Lívia tinha estabilidade financeira, conforto. Mas, durante uma viagem luxuosa, decidiu se separar, após 16 anos de relacionamento. Foi o estopim para empreender a própria marca, cheia de simbologias ritualísticas: a Freya Joias.

“Fui abençoada por poder chegar a um ponto de muita abundância, para ver que não era suficiente” 

O então marido de Lívia, advogado, tinha passado em um concurso público para trabalhar na Controladoria Geral da União, motivo pelo qual o casal se mudou para a capital federal. 

“De repente, passei a viver como dondoca, só que aquilo foi me matando por dentro.”

Ela até chegou a estudar para também prestar um concurso, mas desistiu depois de se dar conta de que não faria muito sentido. O insight veio quando a esposa do irmão dela morreu, aos 26 anos, de leucemia. 

“Ali, eu percebi que a vida é curta. Eu estava em Dubai, viajando com ele e foi meu ponto de virada. Entendi que estava seguindo um molde aparentemente perfeito, de finanças e casamento, mas que tinha me perdido de mim mesma”

Lívia decidiu, então, pedir a separação. A conversa foi inicialmente amigável. “Mas, no dia seguinte, ele me disse: ‘você sabe que, agora, vai ficar sem plano de saúde, né?’”

EM BUSCA DA PRÓPRIA ESSÊNCIA, ELA SE REAPROXIMOU DE QUEM ERA E DO QUE AMAVA QUANDO CRIANÇA 

O término turbulento coincidiu com uma formação que Lívia estava fazendo em Brasília, para ser professora de Ioga.

A ideia era, nas palavras dela, “encontrar um porto seguro para não afundar”.

“O curioso é que os métodos de interiorização do curso nos confrontavam com a realidade — e todo mundo terminou a formação divorciado”

Enquanto os trâmites do divórcio caminhavam, ela passou a morar na casa de uma amiga, enquanto fazia outro curso, de ourivesaria. 

O objetivo inicial era criar amuletos para si mesma e aprofundar o contato com a arte, que era, afinal, uma base familiar.

Medalhão consagrado à deusa Hécate, da Freya Joias.

“Eu tenho uma tia que já fazia joias, o que me marcou desde pequena. Meu avô é músico e perfumista. Minha mãe é artista plástica, mas sempre dizia que arte não dá dinheiro.” 

Apesar do “DNA”, a única prática artística que ela tinha até então era o fato de ter praticado dança do ventre desde os 15 anos. O aprendizado da joalheria foi como um resgate da infância. 

“Quando a gente se desdobra pra entender a essência, fica muito perto daquilo que amava quando era criança. Percebi que, desde pequena, sempre usei penduricalhos que tinham formato de lua, por exemplo. Estava tudo ali”

O que começou despretensiosamente, virou sustento. Em 2019, Lívia voltou a São Paulo para, efetivamente, começar a vender as peças que aprendeu a fazer no curso. 

Com um investimento de 8 mil reais, montou um ateliê na região central e criou um perfil no Instagram para comercializar os itens feitos em prata. 

“AGORA VOCÊ FOI ACEITA PELOS DEUSES”

A escolha do metal tem a ver com o propósito que veio pouco tempo depois, de construir joias ligadas à magia. 

“A prata remete à lua, eleva a intuição e, quando bem polida, vira um espelho, que é um elemento mágico, usado para rebater energias”

Um ano depois, as vendas ficaram aquecidas porque, com o isolamento social da pandemia, a frequência de compras online aumentou. 

No mesmo período, Lívia se formou como terapeuta holística e fez um curso de leitura de runas (um oráculo da tradição germânica). A essa altura, o trabalho que fazia já estava totalmente associado à magia. 

Para ela, assim como no caso da arte, foi uma espécie de resgate do que gostava na infância. 

“Quando eu era pequena, ficava fascinada com as pinturas de Vênus, mas fui me fechando ao longo dos anos. Na faculdade, estava totalmente agnóstica. Só depois da separação, entendi que o contato com as divindades também sempre esteve ali”

O nome “Freya”, homônimo da deusa cultuada na mitologia nórdica, foi ideia de uma designer que contratou para criar a marca. Inicialmente, ela não queria usar comercialmente o nome da divindade, mas intuiu que não deveria escondê-la. 

Quando já trabalhava com as joias nos moldes atuais (ligadas à espiritualidade, figuras do paganismo etc.), Lívia foi convidada para ler runas em um evento no Clube Pinheiros.  

“Lembro que tive contato com gente, foi muita informação, mas era como se eu pudesse ler e entender cada pessoa. Depois daquele dia, meu professor [de runas] falou: ‘agora você foi aceita pelos deuses’.”

NA HORA DE CRIAR AS PEÇAS, O IMPORTANTE É ESCUTAR A CONEXÃO QUE A CLIENTE ESTABELECE

O trabalho da artista atualmente é como uma junção de terapia holística, ourivesaria e ritualística. Ela própria tem algumas divindades das quais é devota, além de Freya – como Tara Vermelha, do budismo tibetano, Afrodite e Hécate. 

Mas, para montar as peças (anéis, pingentes, brincos, colares…), o que vale é a conexão que o próprio cliente estabelece. Lívia explica que o processo todo lembra o de uma tatuagem. 

“Eu pergunto se a pessoa já tem devoção a alguma deusa e se já tem um símbolo em mente para homenageá-la, em qual cristal, qual cor… Depois, faço um esboço, desenho e vejo se concorda, se faz sentido. Só então consigo determinar o tempo de execução e passar um orçamento” 

A precificação considera o material utilizado (como a liga de prata 925 ou 950, o cristal usado – se houver – etc.), o tamanho, prazo necessário, a pesquisa sobre os símbolos e os esboços para chegar ao resultado final.

No caso de Hécate, deidade lunar conhecida como “rainha das bruxas”, são várias as simbologias associadas, como a própria lua e figuras de cães, tochas, chaves e serpentes. 

A joia produzida depende do que se deseja representar. Um medalhão em dupla face em homenagem a Hécate, de 2,5 centímetros de diâmetro, custa, à vista, 503 reais, mais o frete. Um colar grande, personalizado, feito em prata 925, dois tipos de cristal (larimar e ametista) e concha natural branca é vendido a 5 mil reais.

No entanto, nem sempre o cliente sabe como dar forma ao que idealizou para o amuleto. 

“Teve um rapaz que fez uma encomenda para presentear a esposa e, enquanto a descrevia, me veio a imagem de Aine [divindade chamada de ‘rainha das fadas’]. Desenhei, mostrei para ele e perguntei se ele a via naquele desenho. Ele adorou!”

Metade do valor precisa ser paga no ato da encomenda; o restante, na entrega. Os itens personalizados levam, no mínimo, 30 dias para ficarem prontos. 

No processo de fabricação, cada etapa carrega um sentido ritualístico. Até a fase lunar durante a qual uma peça é feita tem um porquê – e há casos em que Lívia conversa com o cliente para contar o que intuiu enquanto produzia. 

“Tem um certo momento em que tudo se encaixa no tempo perfeito: o da pessoa e o meu. O que ela está vivendo, muitas vezes, eu também estou”, afirma. “São joias que exprimem um sentimento, uma lembrança; amuletos que são instrumentos para puxar o sagrado que já está dentro de nós.”

“SE A IMAGEM DA MULHER É USADA PARA VENDER CERVEJA, POR QUE EU NÃO PODERIA USAR A MINHA PARA DIVULGAR MINHAS JOIAS?”

O público da Freya Joias é majoritariamente feminino e boa parte tem forte relação com o ocultismo. 

É comum, por exemplo, que a empreendedora receba encomendas para fazer elementos que serão consagrados pelos clientes em rituais de magia, ou para presentear sacerdotisas. 

O sagrado feminino se expressa até mesmo nas imagens (de si própria) que Lívia utiliza no Instagram para expor seu trabalho. 

“Eu me coloco como um mulherão, com uma verdade minha que é sensual, como Afrodite e Freya, associadas à beleza — algo que é tão sublime e vai além dos estereótipos. Se os homens podem usar a imagem da mulher sexualizada para vender cerveja, por que eu não poderia para divulgar as joias que eu mesma fiz?”

Em 2023, Lívia vendeu cerca de 107 peças, por meio do Instagram. O próximo passo é o site, que deve ficar pronto em algumas semanas.

Quando reflete sobre o fato de ter abandonado uma “vida ideal” para viver da arte, a empresária dispensa arrependimentos. 

“Hoje, não preciso forçar nada. Por mais que tenham perrengues na parte material às vezes, é tudo tão fluido. Fiz o curso de joias ao lado de várias senhoras que falavam: ‘Agora que me aposentei, quero aprender algo novo’. Mas o fato é que quem tem o privilégio de poder escolher não precisa esperar se aposentar para se dedicar ao que quer.” 



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