Emendas impositivas, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional

Emendas impositivas, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional

No dia 1º de agosto de 2024,  em resposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade do PSOL questionando a legalidade do formato atual das chamadas “emendas Pix” do Congresso Nacional, o ministro Flávio Dino acatou parcialmente e determinou a suspensão dessa modalidade de emendas parlamentares (impositivas) com o objetivo de devolver ao Executivo, conforme à Constituição, do controle da execução do orçamento público. E no caso de liberações que elas devem seguir os critérios de publicidade, transparência e rastreamento. 

As chamadas emendas pix são partes das emendas impositivas. São três: as emendas  individuais, chamadas de transferências especiais nas quais cada parlamentar pode indicar como uma parte do orçamento deve ser aplicada. Passaram a serem chamadas de “emendas Pix” porque são transferências rápidas de recursos. Criadas em 2019 , são aquelas em que o governo é obrigado a executar. 

O Portal da Transparência afirma que em 2019 o Congresso Nacional  “flexibilizou as condicionantes para liberação das emendas individuais ao criar uma nova modalidade: transferências especiais. Por meio delas, os parlamentares podem destinar recursos diretamente para o caixa de estados e municípios sem necessidade de formalização prévia de convênios, apresentação de projetos ou aval técnico do governo federal. E informa  que até o dia 15 de agosto de 2024 já havia sido pagos R$ 4,4 bilhões.

As outras duas modalidades  de emendas impositivas são: emendas individuais de transferência com finalidade definida (que, como o nome explicita,  os parlamentares indicam como os recursos devem ser aplicados, com uma determinada finalidade) e as emendas de bancadas, propostas  pelos deputados e senadores de um mesmo estado (para o orçamento de 2024 estava previsto um total de R$ 11,6 bilhões para esta modalidade e R$ 8,2 bilhões para emenda pix). 

No dia 25 de julho de 2024 a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) havia protocolado uma petição sobre as emendas parlamentares individuais (de “transferência especial”) junto ao STF solicitando que se instaurasse uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, afirmando que elas “geram um apagão nos sistemas de fiscalização do Orçamento, dificultando a comprovação da necessidade e o rastreamento da aplicação dos recursos” e pede que o STF  adote “plena transparência e controle sobre as transferências especiais realizadas”. (https://abraji.org.br/noticias/abraji-entra-com-acao-no-stf-para-questionar-emendas-pix-dos-parlamentares).

Na decisão, o ministro afirmou que a medida se justificava  porque visava “impedir a continuidade de caminhos incompatíveis com a Constituição” na medida em que “os  dados apontam que os instrumentos de planejamento são insuficientes, e os mecanismos de controle e transparência, inadequados para fiscalizar essas emendas” e também objetiva  “prevenir que posteriormente haja a promoção de responsabilidade penal e civil de agentes públicos – em decorrência de inconstitucionalidades perpetradas”.

O ministro também fixou o prazo de  90 dias para que a Controladoria Geral da União   realizasse uma auditoria dos repasses dessas emendas em benefícios de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e entidades do terceiro setor entre 2020 e 2024 “As executoras das emendas, terão que respeitar procedimentos objetivos de contratação e deveres de transparência e rastreabilidade”. 

A decisão foi tomada após Audiência de Conciliação realizada com representantes da Câmara dos Deputados, do Senado, Tribunal de Contas da União e da Procuradoria Geral da República (PGR) para tratar do tema e pelo fato de que o Supremo Tribunal Federal havia declarado em dezembro de 2022 que esse tipo de emenda era inconstitucional. Como afirmou o  ministro “o STF invalidou todas as práticas viabilizadoras do orçamento secreto, isto é, aquelas em que não há transparência orçamentária”. 

O ministrou defendeu a necessidade de novas regras, de  procedimentos que pudessem garantir a transparência,  com o objetivo de “evitar danos irreparáveis aos cofres públicos”. Para ele deve-se compreender que a transparência requer a ampla divulgação das contas públicas, a fim de assegurar o controle institucional e social do orçamento público“. 

Para municípios ou estados receberem os recursos, será necessário apresentar o que não havia antes: um plano de trabalho, com os respectivos valores,  o objeto a ser executado, a finalidade e o prazo de execução. Os recursos só poderão ser liberados após o atendimento dessas exigências. 

Foi estabelecido também que o parlamentar não poderá indicar valores para um estado que não seja o dele,  com exceção de projetos de âmbito nacional e que as emendas na área da saúde só poderão ser executadas se tiverem uma autorização prévia do SUS. 

No dia 14 de agosto de 2024, o ministro acolheu um pedido da Procuradoria Geral da República e suspendeu a execução de todas as emendas impositivas do orçamento, incluindo mas emendas de comissão que tem sido usada como “moeda de troca” nas negociações na Câmara dos Deputados  (controladas pelo presidente  da Câmara Artur Lira) com o argumento de que as em vigor não são compatíveis com a Constituição Federal porque não obedecem a critérios de transparência, eficiência e rastreabilidade. 

A medida valerá até a criação pelo governo e o  Congresso Nacional de novas regras para garantir transparência  para liberação de recursos e assim  os pagamentos serão interrompidos até que elas sejam criadas para a execução do orçamento. Ficam de fora apenas obras que estão sendo executadas (ou seja, em andamento) e casos de calamidade pública. 

A decisão portanto é mais ampla: suspende a execução de todas as emendas impositivas. Na decisão, o ministro defendeu que o orçamento impositivo não deve ser confundido com orçamento arbitrário e que não é compatível com a Constituição Federal a execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade e assim, de acordo com a decisão, o governo não é obrigado a liberar recursos de emendas que não cumpram esses requisitos. 

Foi dado um prazo de 30 dias para Executivo e Legislativo prestarem as informações. A decisão final será dada pelo plenário do STF. 

A origem da obrigatoriedade pelo governo de emendas impositivas está na aprovação pelo Congresso Nacional da Emenda Constitucional n.86, de 17 de março de 2015 quando a Câmara dos Deputados eram presidida por Eduardo Cunha que tornou obrigatória uma parcela do orçamento da União, limitada na época a 1,2% do orçamento.

No entanto, desde então os valores só aumentam e com isso também o poder dos parlamentares sobre a execução do Orçamento. 

Como consta no documento sobre emendas pix do Portal da Transparência “Em 2020, no ano de estreia, elas somaram R$ 620 milhões. O montante subiu exponencialmente, até chegar a R$ 6,75 bilhões reservados no orçamento de 2023, compondo um terço das emendas individuais (…) O volume e facilidade são inversamente proporcionais à transparência: entre 2020 e 2023, R$ 10,4 bilhões em emendas PIX não têm o destinatário final especificado na Lei Orçamentária Anual LOA)” (https://www.transparencia.org.br/downloads/publicacoes/emendas_pix_2023.pdf).

No dia seguinte à decisão do Ministro, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado decidiram apresentar um pedido de suspensão da Liminar, assinada por vários partidos e encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para o presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, as emendas parlamentares são importantes para “o financiamento de serviços essenciais, como as santas casas e hospitais filantrópicos, que dependem desses recursos para sobreviver” e que mudar por meio de uma decisão monocrática é inaceitável, pois “ignora o papel fundamental do Parlamento na alocação de recursos públicos”.

Só que, como falta transparência, como saber se foram  mesmo  para santas casas e hospitais filantrópicos e não para outros fins e lugares? Essencialmente se tratava da perda de um instrumento fundamental de barganha que estava sendo usada. Foi justamente na gestão dele que houve um crescimento expressivo com a justificativa de “dar mais autonomia ao Congresso”. Em 2024 está previsto um total de R$ 53 bilhões. 

O ministro certamente não ignora essas alegadas destinações, até porque ele mesmo foi deputado federal, senador e governador de Estado (Maranhão). O que ele quer é que haja transparência.  E esse também foi o entendimento unânime do Supremo Tribunal Federal que no dia 17 de agosto de 2024 manteve a decisão do ministro até que Congresso e Executivo aprovem “medidas para garantir transparência e mecanismos adequados de fiscalização”.

Segundo uma matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo no dia 17 de agosto de 2024 assinada por André Shalders das 30 prefeituras que devem ser auditadas pela Controladoria Geral da União (CGU) a pedido do ministro “só seis (20%) dão alguma transparência às emendas parlamentares recebidas. As outras 80% sequer mencionam o termo ‘emenda’ em seus portais da transparência ou, quando o fazem, deixam o campo vazio, sem qualquer informação. Das 20% restantes, nenhuma tem informações detalhadas, atualizadas e completas sobre o recebimento e o uso das emendas. Procuradas, 29 prefeituras não se manifestaram e apenas a cidade de Bela Vista respondeu dizendo que seu portal deveria conter as informações e que irá cobrar do prestador do serviço”. 

A CGU deverá cumprir o que determinou o ministro Flávio Dino,  de que encontrasse “as dez cidades que mais receberam emendas, de todos os tipos, por número de habitantes. de 2020 a 2023. Cruzando dados do Censo de 2022 e do Siafi, o Estadão chegou à lista de 30 cidades que lideraram o ranking de emendas per capita nestes anos”.

Um exemplo da forma como são destinadas as emendas parlamentares foi uma matéria publicada no jornal O Globo no dia 18 de agosto de 2024 por Caio Sartori e Bernardo Mello “Candidato à prefeitura do Rio pelo PL, Ramagem destinou emenda a pastor de Michelle Bolsonaro” informando que o “candidato à prefeitura do Rio pelo PL, o deputado federal Alexandre Ramagem destinou R$ 500 mil em emenda parlamentar para uma entidade dirigida por um  pastor, líder da igreja frequentada pela ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. A verba foi destinada por Ramagem ao Instituto Assistencial Atitude, um dos braços da Igreja Batista Atitude, em maio deste ano”.

O fato é que a suspensão dessas emendas, fez com que o presidente da Câmara dos Deputados, em retaliação, desengavetasse a tramitação de  PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que visam  limitar os poderes do STF. Uma, que já foi aprovada no Senado e ainda está para ser votada na Câmara dos Deputados, limita decisões individuais e dos ministros (de decidirem de forma monocrática) e outra que dá ao Congresso poder de anular decisões do Supremo.

Esta é claramente inconstitucional e não deverá ter prosseguimento. O artigo 60 da Constituição no § 4º é claro nesse sentido: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”.  

Trata-se de uma cláusula pétrea e viola o artigo 60 da Constituição ao transferir parte da execução do orçamento da União ao Congresso Nacional. 

Segundo o ministro Flávio Dino as emendas sem critérios, transparência e, portanto sem a possibilidade de rastreamento “É um afronta ao princípio da separação de poderes” e considera que há “uma grave anomalia que tenhamos um sistema presidencialista, oriundo do voto popular, convivendo com a figura de parlamentares que ordenam despesas discricionárias como se autoridades administrativas fossem”.  Para ele “não é compatível com a Constituição Federal à execução de emendas ao orçamento que não obedeçam a critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade” e defende que haja uma “solução constitucional e de consenso entre o Executivo e o Legislativo que mantenha o princípio da harmonia entre os poderes”. 

Sobre o orçamento secreto, o professor e cientista político  Aldo Fornazieri no artigo No reino da imoralidade, publicado na revista Carta Capital (edição n. 1324 de 21 de agosto de 2024)  afirma que se trata do mais escandaloso e inescrupuloso abuso do Congresso “ofendendo o interesse público e violando a Constituição”. A  razão é que “as emendas sonegam  informações sobre sua finalidade, seu destino, sua rastreabilidade, sua fiscalização e a prestação de contas da sua execução” e se trata de “um golpe contra a Constituição” principalmente o artigo 37 ao determinar que a administração direta ou indireta de qualquer dos um dos três poderes deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade e eficiência, violados pelo tal orçamento secreto.

Assim, nem o governo nem o STF devem se curvar a chantagens do Congresso e o ministro Flávio Dino está correto, e agora referendado de forma unânime pelo Supremo Tribunal Federal ao determinar que deve haver rígido controle do orçamento público, cumprindo o que estabelece o artigo 37 da Constituição. 

Em função da  (compreensível) repercussão da decisão do STF no Congresso Nacional no dia 20 de agosto de 2024 foi realizada uma reunião com o presidente do STF e os presidentes da Câmara e do Senado e o ministro da Casa Civil, representando o governo, sobre o impasse em relação ao pagamento de emendas e depois da reunião foi divulgada uma nota na qual afirma que houve consenso de que as emendas parlamentares impositivas serão mantidas, mas deverão respeitar os critérios de transparência, rastreabilidade e correção e que o valor das emendas não poderá ser superior ao aumento total das despesas discricionárias (não obrigatórias). E foi estabelecido um prazo de dez dias para que sejam apresentadas as regras que deverão ser seguidas para a liberação dos recursos e como salientou o ministro Flávio Dino, a decisão deve ser analisada também pelo plenário do STF.

Agora, resta aguardar seus desdobramentos.

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