O adiamento da tramitação do Projeto de Lei (PL) 2338/2023, que trata da regulação da inteligência artificial (IA) no Brasil, reacendeu o alerta entre pesquisadores, juristas e organizações da sociedade civil sobre o risco de desidratação do texto e o avanço do lobby das grandes empresas de tecnologia no Congresso Nacional.
A avaliação foi compartilhada durante reunião para debater a regulamentação da IA e seus impactos no mundo do trabalho, na comunicação e na democracia, promovida pelo Comitê Gaúcho do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), de forma híbrida, na última quarta-feira (17), no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários). O encontro contou com apoio do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Cpers) e do Coletivo Pão com Ovo.
Para o advogado e professor universitário André Fernandes, doutorando em Direito com foco em inteligência artificial e fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), o momento atual pode ser definido como uma “ressaca política”. Segundo ele, a confirmação de que o relatório do PL não será apresentado ainda em 2025 empurra o debate para 2026, ano eleitoral em que, historicamente, o Congresso apresenta menor disposição para avançar em regulações estruturantes.
Fernandes relembrou que o debate sobre a regulação da IA no Brasil teve início em 2019, com a apresentação do PL 21/2020, que tramitou na Câmara dos Deputados de forma acelerada e sem participação social efetiva. “Isso comprometeu a qualidade do texto”, avaliou. No Senado, o cenário foi distinto, com a realização de audiências públicas e a incorporação de contribuições multissetoriais, o que resultou na formulação de um novo projeto, o PL 2338/2023, posteriormente devolvido à Câmara, reiniciando o processo.
Segundo o pesquisador, a etapa de participação popular já foi encerrada e, neste momento, o debate se concentra na elaboração do relatório pelo relator. Embora o acesso restrito ao texto possa dificultar uma ofensiva mais agressiva do setor privado, Fernandes ponderou que esse tipo de blindagem nem sempre se confirma. Ainda assim, avalia que o cenário pode permitir uma disputa mais equilibrada pela manutenção de dispositivos que garantam direitos.
Entre os principais pontos de preocupação, ele destacou a tentativa do governo federal de incorporar ao projeto uma política de atração de data centers, associada a incentivos fiscais, sem contrapartidas claras em termos de direitos trabalhistas, equilíbrio regional ou proteção ambiental. Também alertou para o risco de supressão do capítulo sobre direitos autorais e da retirada de garantias trabalhistas incluídas no texto do Senado, além da pressão constante de big techs e entidades empresariais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), para esvaziar o caráter regulatório da proposta.
Outro eixo central da disputa, segundo Fernandes, é a exigência de rotulagem e identificação de conteúdos produzidos por inteligência artificial. Ele avaliou que a medida é fundamental para o enfrentamento da desinformação e dos deepfakes, especialmente em um país vulnerável à circulação de notícias falsas. Embora a aplicação integral da lei durante o período eleitoral seja limitada, afirmou que a aprovação do projeto ainda teria impacto sobre decisões judiciais e interpretações da legislação eleitoral.

Concentração de poder e soberania digital
Na avaliação de Alexandre Gonzales, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e integrante do coletivo DiraCom (Direito à Comunicação e Democracia) e da Coalizão Direitos na Rede, o debate sobre inteligência artificial está inserido em uma agenda mais ampla e adversa, marcada pela concentração de poder das grandes plataformas digitais e por um modelo de desenvolvimento tecnológico orientado pelos interesses do capitalismo de plataforma.
Gonzales criticou a naturalização de modelos privados de IA, desenvolvidos majoritariamente por empresas dos Estados Unidos e da China, como se fossem um destino inevitável para o Brasil. Para ele, é fundamental ampliar a leitura crítica da sociedade sobre essas tecnologias, compreendendo as relações sociais que sustentam sua produção, incluindo o trabalho humano invisibilizado e precarizado que alimenta esses sistemas.
O pesquisador também ressaltou os impactos socioambientais da infraestrutura necessária ao funcionamento da IA, como os data centers, e defendeu que soberania digital significa a capacidade do país de decidir como produzir, tratar e utilizar seus próprios dados em favor do bem-estar social, da justiça e da igualdade.
Ao relembrar a experiência recente da regulação de plataformas digitais, Gonzales argumentou que os avanços só foram possíveis graças à combinação entre mobilização social, articulação política e disposição do governo para enfrentar pressões internas e externas, inclusive do governo dos Estados Unidos. Para ele, esse aprendizado deve orientar a atuação da sociedade civil na disputa em torno do PL da IA e de outras agendas, como a regulação da concorrência no mercado digital.
Direitos humanos, informação e trabalho
O advogado Guilherme Duarte, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília (UnB) e assessor de incidência da Repórteres Sem Fronteiras para a América Latina, destacou que a resistência à regulação da inteligência artificial é intensa tanto no plano internacional quanto no doméstico. Segundo ele, o adiamento do debate para um ano eleitoral exige ainda mais organização e pressão social para evitar retrocessos.
Duarte ressaltou o papel do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que instituiu uma relatoria específica sobre inteligência artificial para analisar seus impactos sob a perspectiva da proteção de direitos fundamentais. No âmbito dessa atuação, relatou a realização de debates, atividades no G20 Social e ações de incidência política.
Entre os pontos centrais, ele destacou a proteção aos direitos autorais e a integridade da informação. No caso da IA generativa, defendeu o reconhecimento e a remuneração adequada do uso de conteúdos produzidos por jornalistas, artistas e outros criadores, tanto no treinamento dos sistemas quanto na exploração comercial. Segundo Duarte, apesar de propostas mais robustas apresentadas recentemente pelo governo, ainda não há garantias de que elas serão incorporadas ao relatório final.
Sobre a integridade da informação, alertou para o papel dos sistemas de recomendação na amplificação de conteúdos desinformativos e nocivos à democracia. Para ele, a regulação deve estabelecer obrigações claras de governança e transparência, fortalecendo a pluralidade informativa e a liberdade de expressão.
Data centers, vigilância e software livre
O ex-coordenador-geral do FNDC e representante do Fórum no Conselho Nacional de Direitos Humanos, Admirson Medeiros Ferro Júnior (Greg), destacou que o debate sobre data centers tem sido acompanhado de perto pelo CNDH, a partir de provocações do deputado estadual Matheus Gomes (Psol-RS). Segundo ele, o parlamentar realizou diagnósticos e articulações junto a ministérios e levou o tema ao Conselho, especialmente em relação a projetos envolvendo data centers previstos para municípios como Eldorado do Sul e Charqueadas, no Rio Grande do Sul.
A partir dessa mobilização, o CNDH passou a promover atividades, emitir recomendações e dialogar com o poder público, o Legislativo e instâncias internacionais, como o G20, os Brics e a COP30. “É uma construção permanente, que envolve incidência política, produção de materiais e articulação com parlamentares”, afirmou.
Greg, que também coordena a relatoria sobre a IA no CNDH, alertou para os riscos associados ao uso de tecnologias de vigilância, como o reconhecimento facial, e citou a recente resolução do CNDH sobre o tema. Ele mencionou casos de manipulação de imagens e vozes por meio de IA, utilizados para desinformação e violação de direitos. “As plataformas seguem sem regulação e sem responsabilização. É uma batalha desigual”, avaliou, defendendo maior mobilização social diante de um Congresso que classificou como um dos mais conservadores da história recente.
Na avaliação do dirigente, enfrentar esse cenário exige pressão popular, articulação territorial e retomada de políticas estratégicas, como o incentivo ao software livre. “O Brasil precisa voltar a ter uma política pública de software livre. Isso dialoga com data centers, soberania digital, infraestrutura e direitos”, afirmou.

Mobilização social e disputa geopolítica
A coordenadora-geral do FNDC, Katia Marko, destacou a necessidade de reorganizar os comitês estaduais do Fórum, especialmente no Rio Grande do Sul, e fortalecer a atuação de base. Segundo ela, apesar da forte participação do FNDC em articulações nacionais, como a Coalizão Direitos na Rede e a campanha Internet Legal, ainda há dificuldades em capilarizar o debate nos estados.
Como estratégia para 2026, Marko anunciou a realização de uma série de caravanas nacionais pela democratização da comunicação, com atividades previstas em dez estados. A programação inclui debates, oficinas e ações culturais, com início em março, em Porto Alegre, passando por Belém, São Paulo, Recife, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba, Fortaleza e Belo Horizonte. “A ação concreta ajuda a organizar, mobilizar e trazer mais gente do que apenas o debate abstrato”, afirmou.
O pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP Atahualpa Blanchet trouxe uma perspectiva internacional sobre a regulação da inteligência artificial, citando experiências na América Latina e o acompanhamento da implementação da recomendação da Unesco sobre ética em IA.
Segundo ele, há um “dilema regulatório”: a ausência de normas pode levar a danos irreversíveis, enquanto regulações mal formuladas podem não dar conta da complexidade do fenômeno. Blanchet alertou para impactos no mundo do trabalho, como a intensificação da automação, a subordinação algorítmica e o enfraquecimento de direitos trabalhistas, defendendo a negociação coletiva como ferramenta central de proteção.
Já o técnico em computação na Companhia de Processamento de Dados do Estado do RS Sady Jacques, militante do movimento de software livre e dos Pontos de Cultura, alertou para a dependência do Brasil em relação às grandes empresas de tecnologia. Ele criticou a transferência massiva de dados públicos para plataformas de big techs estrangeiras, que operam sob legislações de outros países. “Nossos dados estão submetidos a interesses que não são os da sociedade brasileira”, denunciou.
Para ele, a defesa da soberania digital passa pela Constituição, pela valorização da informática pública e pela mobilização social. Jacques defendeu a retomada do Fórum Internacional de Software Livre em um novo formato, com maior alcance popular e presença nas redes. “Sem povo na rua e nas redes, não haverá avanço. Hoje, a realidade é mediada por algoritmos, e é isso que precisamos enfrentar”, concluiu.
Geopolítica da IA expõe limites do Brasil e disputa entre EUA e China
Ao final do debate, André Fernandes afirmou que o avanço da inteligência artificial tem tornado insuficientes leituras maniqueístas da geopolítica global, baseadas na oposição entre “bons e maus”. Para ele, a disputa entre Estados Unidos e China envolve múltiplos interesses e práticas problemáticas, o que coloca o Brasil em uma posição especialmente delicada.
Segundo o pesquisador, a economia global da tecnologia foi estruturada para inviabilizar a inserção competitiva de países como o Brasil. Ele lembrou que os Estados Unidos só alcançaram seu atual patamar tecnológico a partir de um projeto de Estado de longo prazo, iniciado ainda no período entre as duas guerras mundiais. “O Vale do Silício não surge nos anos 1980, mas nos anos 1930”, destacou, observando que esse processo também envolveu práticas violentas de expropriação.
Para Fernandes, há limites objetivos de tempo e de recursos que impedem o Brasil de disputar esse mesmo modelo de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, alertou que a China não deve ser vista como uma alternativa benéfica de subordinação. “Não necessariamente a China é um bom player para que nós estejamos subservientes a ela”, afirmou, defendendo a construção de uma estratégia própria voltada à proteção da população brasileira.
No campo ambiental, avaliou que o Brasil poderia ocupar um papel estratégico de liderança global, mas apontou uma contradição entre o discurso diplomático e as políticas internas. Ele relatou que, na COP30, em Belém, o país foi visto como um “campeão ambiental” no plano internacional, mas acusado de hipocrisia diante da fragilidade das políticas internas. “Esse campeão ambiental desaparece quando se olha para a política de Estado”, disse.
Com base nas pesquisas do IPVEC, Fernandes defendeu que a inovação brasileira pode seguir um caminho independente ao articular tecnologia, natureza e inteligência social, sem reproduzir modelos estadunidenses ou chineses. Ainda assim, alertou para a ambivalência da política externa brasileira, que mantém fortes relações comerciais com a China enquanto adota diretrizes tecnológicas alinhadas ao Vale do Silício. “Você não pode prestar servidão a dois reis ao mesmo tempo”, sintetizou.
Ele também criticou a falta de coerência e de planejamento de longo prazo nas políticas públicas, citando como exemplo o “mapa do caminho” anunciado pelo governo Lula, que, segundo ele, acaba esvaziado por disputas internas e pela conjuntura eleitoral permanente. Para Fernandes, o país precisa ocupar todos os espaços possíveis para conter danos no atual cenário geopolítico.
Software livre, participação social e modelos alternativos
Alexandre Gonzales destacou a importância da reativação dos comitês regionais do FNDC e da caravana nacional promovida pelo Fórum, apontando o fortalecimento da mobilização social em diferentes regiões do país.
Ele também celebrou a retomada do Fórum Internacional de Software Livre, lembrando o protagonismo brasileiro nos anos 2000, quando o movimento contribuiu para barrar agendas de securitização da internet e para a construção do Marco Civil da Internet, em um contexto marcado pelas denúncias de vigilância reveladas por Edward Snowden. Segundo Gonzales, o golpe de 2016 interrompeu esse papel, hoje deslocado para os debates sobre inteligência artificial e economia de dados.
Ao criticar a polarização entre os modelos estadunidense e chinês, observou que ambos se baseiam em grandes estruturas empresariais e enormes centros de dados, verdadeiros “latifúndios de computadores”. Diante disso, propôs a reflexão sobre alternativas descentralizadas, como centros comunitários de dados voltados a políticas públicas e demandas sociais.
Gonzales também questionou o modelo de publicidade digital baseado na vigilância, apontando seus impactos sobre a saúde mental de toda a população. Para ele, apesar do cenário político desfavorável, é fundamental manter o debate e investir na mobilização social. Ao final, reforçou que iniciativas como a caravana do FNDC são passos importantes para ampliar o diálogo e construir respostas coletivas aos desafios da inteligência artificial, da governança da internet e da democracia no Brasil.

