No último dia 14 de maio, os deputados estaduais de Goiás aprovaram, por unanimidade e em duas votações, a primeira legislação estadual de inteligência artificial (IA) do Brasil. A tramitação durou apenas um dia. Agora, o texto segue para a sanção do governador Ronaldo Caiado.
A proposta foi elaborada pelo próprio governador, assinada na terça-feira (13), e representa um movimento estratégico de Goiás para se posicionar como um dos protagonistas no setor de tecnologia e inovação. A iniciativa estadual ocorre em paralelo ao debate sobre a regulamentação da IA no Congresso Nacional, onde o projeto de lei nº 2338, de 2023, tramita desde o ano passado.
Regulação goiana aposta na segurança jurídica e na atração de investimentos
De acordo com Adriano da Rocha Lima, secretário-geral do governo de Goiás e coautor da proposta, o principal objetivo da nova lei é eliminar a “insegurança jurídica” provocada pela indefinição em âmbito federal. Segundo ele, essa insegurança tem atrasado investimentos de grandes empresas no Brasil, como a Amazon. “A Amazon, por exemplo, está segurando investimento no Brasil por causa disso”, afirmou Lima à reportagem.
O secretário também destacou que a Constituição garante aos estados o direito de regular setores concorrenciais, reforçando a validade da iniciativa goiana mesmo diante da possibilidade de uma futura legislação federal. “A Constituição prevê o direito de concorrência regulatória entre estados e a União”, explicou.
Ainda assim, especialistas apontam possíveis conflitos entre as esferas estadual e federal. Ronaldo Lemos, cientista-chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio), afirmou que, caso o projeto federal seja aprovado, a União poderá se sobrepor em pontos sensíveis, como a obrigatoriedade de pagamento por uso de propriedade intelectual. “É competência da União, e sobre isso o estado não pode fazer nada”, disse Lemos.
Na avaliação de Bruno Bioni, diretor-fundador da associação Data Privacy Brasil, a antecipação de uma lei estadual pode criar riscos de judicialização. “Temos que aprender com os episódios das guerras fiscais; é um sinal de que o legislativo federal precisa tratar do tema”, alertou.
Incentivos, sustentabilidade e capacitação: os pilares do marco legal goiano
A legislação goiana estabelece uma série de princípios e diretrizes para o desenvolvimento e uso da inteligência artificial no estado. Entre os principais pontos, estão a preferência por soluções tecnológicas de código aberto, a definição de direitos para desenvolvedores, operadores, usuários e não usuários, além da regulamentação do uso da IA para melhorar serviços públicos.
Outro destaque é a criação do Núcleo de Ética e Inovação em Inteligência Artificial (NEI-IA), um comitê consultivo e multissetorial que deverá definir boas práticas para a aplicação da tecnologia, especialmente em temas como sustentabilidade.
A lei também propõe a criação de incentivos fiscais e creditícios para atrair investimentos em infraestrutura digital, com foco especial em data centers — instalações que hospedam supercomputadores responsáveis por treinar modelos de inteligência artificial.
Segundo um estudo do Ministério da Fazenda, o Brasil pode receber até R$ 2 trilhões em investimentos no setor de data centers.
O uso de energia limpa é outro aspecto central da estratégia goiana. A legislação menciona o biometano, um gás renovável obtido de resíduos orgânicos do agronegócio, como uma possível solução para suprir a alta demanda energética dessas unidades. “A vantagem do biometano é a possibilidade de geração contínua, diferente das fontes eólica e solar”, ressaltou Rocha Lima.
No entanto, a produção de biometano em larga escala ainda é incipiente no Brasil e enfrenta desafios de custo. Atualmente, os principais projetos de infraestrutura e inteligência artificial se concentram no Sul e Sudeste, regiões abastecidas pela hidrelétrica de Itaipu.
A iniciativa de Goiás busca alterar esse cenário, aproveitando a matriz elétrica brasileira, que é 88% renovável.
Durante um encontro em Nova York, o vice-presidente de políticas públicas da Amazon Web Services, Shannon Kellogg, teria sinalizado que Goiás passou a reunir os dois principais requisitos para receber investimentos: segurança jurídica e energia limpa, segundo informou o secretário Adriano da Rocha Lima.
Além disso, a nova lei contempla medidas para fomentar a educação e a capacitação em inteligência artificial, desde a educação básica até programas específicos, como o “IA no Campo – Agro-Tech Aberta Global”. A ideia é criar um ambiente competitivo em tecnologia, integrando o desenvolvimento econômico com a formação de profissionais especializados.
A legislação também prevê a criação do Centro Estadual de Computação Aberta e Inteligência Artificial e do “Sandbox Estadual Permanente de Inteligência Artificial”, que permitirá maior flexibilidade regulatória para startups do setor.
Por fim, o texto trata da adoção de IA pela administração pública, priorizando modelos de código aberto, que podem ser utilizados, editados e auditados por qualquer interessado.
A regulamentação inclui ainda temas emergentes, como os agentes autônomos de IA e a inteligência artificial embarcada em veículos, câmeras e outros dispositivos.
De acordo com o secretário-geral de governo, a elaboração da lei foi inspirada por uma consulta pública promovida pelo ITS-Rio, Abranet e Campus Party, iniciada no final de 2023. Além disso, Goiás buscou referências internacionais, como a estratégia indiana de desregulamentação.
“Em conversa com o ministro da Pesquisa Científica e Industrial da Índia, ele comentou espontaneamente que a estratégia indiana em inteligência artificial era a da desregulamentação”, relatou Rocha Lima.
Agora, com a aprovação da lei e a expectativa de sua sanção pelo governador Ronaldo Caiado, Goiás passa a ser o primeiro estado brasileiro com um marco regulatório próprio para inteligência artificial.