O Brasil registrou mais de 4.100 queimadas por dia no mês de setembro. Foram 176.317 focos de queimadas registradas no ano até agora, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As principais cidades do país são constantemente cobertas por fumaça e a população começa a temer sobre os efeitos disso na saúde. Nesse cenário de crise, o governo federal tem feito anúncios que sugerem confiscos de propriedades onde há ocorrências de fogo e a criação de uma autoridade climática para “combate à mudança do clima”.
Esses anúncios recebem críticas de especialistas e políticos da oposição pela falta de medidas reais e eficazes por parte do Executivo para combater a situação. Cortes no orçamento, falta de gestão e descumprimento de promessas são os principais pontos citados.
Antes mesmo de assumir, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) adotou a pauta ambiental como discurso para ter protagonismo internacional. Agora, o presidente se vê pressionado diante dos recordes de queimadas e suas consequências que vão de corredores de fumaça a chuva preta e ar poluído afetando diversos estados, mesmo onde há poucas queimadas. Os anúncios e ações da gestão petista são alvo de críticas por evidenciar a falta de prioridade com que o tema é tratado.
Os atos do governo, especialmente em meio à crise, reforçam a posição secundária da pauta já verificada como conduta adotada desde os debates da Medida Provisória que reorganizou a Esplanada dos Ministérios. Nas negociações, Lula preferiu desidratar o ministério do Meio Ambiente e os poderes da ministra Marina Silva.
A situação também confronta os discursos que Lula e Marina usaram durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Durante os quatro anos, e em especial em 2019 e 2020, quando foram registrados recordes de queimadas, ambos teceram muitas críticas à gestão de Bolsonaro.
Autoridade climática foi promessa de campanha que ainda não saiu do papel
O anúncio sobre a criação da “autoridade climática” – feito nesta semana – gerou controvérsias. A autoridade deve funcionar como mais uma das agências do governo com foco no enfrentamento aos efeitos da mudança no clima no Brasil. A Gazeta do Povo procurou o Ministério do Meio Ambiente para saber como a autoridade climática atuará e se a sua criação está ligada à questão das queimadas, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
Essa foi uma das principais bandeiras de Lula para o meio ambiente na campanha eleitoral de 2022. A proposta em si não avançou no primeiro ano de mandato e sequer foi citada na reestruturação da Esplanada no começo da nova gestão.
As controvérsias envolvem questões orçamentárias que evidenciam a falta de gestão da questão ambiental no governo Lula 3. Um exemplo são os cortes feitos nos recursos para combate e prevenção de incêndios.
Ainda em 2023, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) solicitou R$ 120 milhões para o combate às queimadas em 2024. Ao enviar o orçamento ao Congresso, no entanto, o governo optou por destinar apenas metade do valor. Por fim, com os cortes feitos no Congresso, o orçamento do órgão responsável pela prevenção e pelo combate às queimadas ficou com pouco mais de R$ 50 milhões à disposição.
Para resolver os problemas com o orçamento, o governo deve contar com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) para emplacar a autoridade climática. O ministro Flávio Dino já sinalizou que deve tirar as despesas decorrentes de ações para o enfrentamento às queimadas do limite de gastos imposto pelo arcabouço fiscal, enquanto durar a emergência climática. O mesmo pode ocorrer com os gastos relacionados à criação da autoridade climática. Ou seja, serão gastos que escaparão ao programa de austeridade fiscal do governo e podem causar o efeito de distorcer os resultados econômicos do governo.
Além disso, segundo especialistas, a medida não terá efetividade e reforça a falta de gestão do atual governo. “No Brasil, a competência em matéria ambiental já é muito fracionada, com sobreposições, sombreamento e conflito de funções, o que, por si só, já compromete a efetividade e eficiência da noção de integração e sistema, previstos na Constituição e na Política Nacional de Meio Ambiente”, disse o doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, George Humbert, que é presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade (Ibrades).
A crítica é reforçada pelo advogado e consultor ambiental do think tank Iniciativa Dex, Antônio Fernando Pinheiro Pedro. “Que autoridade climática pode haver com dirigentes que não possuem autoridade nenhuma? Que estão demonstrando não terem a mínima capacidade de governança ambiental? Nós estamos sofrendo um apagão ambiental no país por conta da incompetência da Marina Silva e do governo Lula”, disse Pinheiro Pedro.
Oposição e especialistas reagem a anúncio sobre confisco de propriedades para punir por queimadas
Diante dos mais de 176 mil focos de queimadas registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tem dito que o governo estuda o aumento de penas para quem provocar incêndios. “Estamos estudando as medidas de como aumentar a pena, inclusive há uma discussão de que se possa aplicar o mesmo estatuto que se aplica para situações análogas à escravidão, em que aquela terra é confiscada, ela volta para o domínio do Estado para quem comete incêndio que seja claramente criminoso”, disse a ministra a jornalistas em evento do G20 sobre bioeconomia.
A Gazeta do Povo procurou o Ministério do Meio Ambiente para buscar mais detalhes sobre os estudos que envolvem o confisco mencionado por Marina, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
A fala de Marina gerou repercussão entre políticos de oposição. Para eles, a medida é inconstitucional. “A ministra Marina Silva propõe uma medida inconstitucional ao sugerir o confisco de terras em casos de incêndios criminosos, uma hipótese não prevista na Constituição. O governo Lula não consegue administrar sequer as terras públicas federais e agora propõe uma solução que ameaça a propriedade privada, gerando insegurança jurídica e abrindo margem para abusos”, disse a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), líder do partido na Câmara.
O líder da oposição na Câmara, deputado Filipe Barros (PL-PR), também criticou a possibilidade aventada por Marina de confiscar propriedades. “Um governo que não cumpre seu dever de zelar pela soberania e integridade das riquezas naturais do Brasil, quer agora ver, na crise das queimadas, mais uma oportunidade de rasgar o direito constitucional à propriedade”, disse Barros.
Para Georges Humbert, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, afirma que não há base legal para o confisco. “[É previsto] confisco somente de terra improdutiva ou com plantio de drogas ilícitas”, disse.
Nos casos de incêndios criminosos, Humbert aponta que as propriedades dos responsáveis, “no máximo”, são passíveis de desapropriação. A desapropriação é a sanção por violar a função social, com pagamento do valor justo, por meio de precatórios.
Ações do governo não são suficientes contra queimadas
Ao anunciar a criação da autoridade climática, a ministra Marina Silva destacou que a situação estaria ainda mais grave sem a queda do desmatamento no país. As falas, no entanto, não abarcam as críticas.
Para analistas, os anúncios do governo relacionados às queimadas são oportunismo para manutenção do discurso “pró-meio ambiente”. “Eles confundem militância com governança. Isso é muito grave, uma contradição insustentável. Ou você milita, ou você governa. Infelizmente a gestão ambiental de militância da Marina Silva e do PT é uma farsa bem-intencionada. Não vai ter qualquer efeito concreto, como aliás, nunca teve”, disse o advogado e consultor ambiental, Antônio Fernando Pinheiro Pedro.
Após o corte no orçamento para as queimadas, em julho, o governo editou uma medida provisória que autorizou o gasto de R$ 137 milhões para combate aos incêndios no Pantanal. Atualmente, o governo federal afirma que há 1.468 brigadistas atuando na Amazônia Legal, incluindo cerca de 200 no estado do Amazonas. No Pantanal, o governo aponta ter 842 profissionais em campo.
Para a oposição ao governo, na prática, os anúncios sobre o confisco e a autoridade climática somados aos problemas com o orçamento apontam falhas na gestão do tema. “Marina Silva – já conhecida como ‘Marina Cinzas’ – falhou bisonhamente na estratégia de prevenção e controle das queimadas, e isso pelo segundo ano seguido”, afirmou o deputado Filipe Barros.
Governo tinha conhecimento sobre possibilidade de secas e queimadas
Em março de 2023, a ministra Marina Silva editou portaria que decretou estado de emergência em 19 estados e no Distrito Federal por risco de incêndios florestais durante diferentes períodos do ano. Em 2024, a medida foi reeditada em abril. Nessas portarias, o governo estabeleceu calendários que mostram os estados com maior probabilidade de queimadas ao longo do ano. Essas portarias, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, viabilizam o planejamento de brigadas federais para combate aos possíveis incêndios florestais.
A portaria em vigor aponta que entre março e outubro, os estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Sul e São Paulo têm maior probabilidade de registrar queimadas. Já entre abril e novembro, são somados o Acre, Amazonas e Mato Grosso à lista. De maio a dezembro, a lista chega a envolver 13 estados, com a inclusão do Amapá e do Ceará, nas áreas mais suscetíveis a incêndios florestais.
Além disso, os números de municípios em situação de emergência ou calamidade em razão de seca, estiagem ou incêndios registrados nos dados do painel da Defesa Civil demonstram a gravidade da situação. Em 2023, o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional reconheceu 1.961 protocolos que pediam o reconhecimento da situação de emergência ou calamidade pela falta de chuvas ou pelas queimadas. Neste ano, até o dia 6 de setembro, já houve 948 registros reconhecidos pelo Ministério.
No acumulado de janeiro a 12 de setembro, o Brasil já teve 176.317 focos de queimadas neste ano. É o quinto ano com o maior número de queimadas neste período, sendo que os demais foram registrados em 2007, 2005 e 2004.
O líder da oposição, deputado Filipe Barros, também criticou a falta de medidas preventivas diante dos dados e dos alertas meteorológicos. “A meteorologia já alertava há meses para um período de seca, e a ministra do Meio Ambiente do Lula até agora não deu um sinal de fumaça que indique ações não apenas concretas, mas perenes, para dar segurança para quem vive e trabalha na área rural – e, consequentemente, começar a debelar a cortina de fumaça que já adoece milhões de brasileiros”, disse Barros.