Governo prepara decreto que autoriza ANP a intervir em produção de gás – 24/08/2024 – Mercado

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prepara um decreto que autoriza a ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis) a intervir no mercado de gás para determinar às empresas a ampliação da produção do insumo para comercialização.

A medida consta em minuta de decreto que trata das regras do programa “Gás para Empregar”, uma das bandeiras do ministro Alexandre Silveira à frente do MME (Ministério de Minas e Energia) para baixar o preço do gás natural no Brasil.

Segundo interlocutores do governo, o texto ainda passa por ajustes finais antes de ser submetido ao CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) em reunião convocada para esta segunda-feira (26). Mas a Folha confirmou com pessoas envolvidas nas discussões que o teor da proposta prevê a autorização de intervenção. O decreto será assinado por Lula em cerimônia logo após a reunião.

Procurado, o MME não se manifestou até a publicação deste texto. A reportagem também procurou diretamente o ministro Alexandre Silveira, mas não obteve retorno.

O texto do decreto diz que, para garantir a oferta de gás natural, compete à ANP “determinar, mediante prévio processo administrativo com oitiva das empresas, a redução da reinjeção de gás natural ao mínimo necessário, inclusive com o estabelecimento do volume máximo de gás natural a ser reinjetado”.

A ANP também teria competência para “determinar, mediante prévio processo administrativo com oitiva das empresas, o aumento da produção de gás natural para campos em produção, inclusive os campos maduros”.

Os dois dispositivos buscam atacar o que Silveira vê como um dos principais obstáculos à queda no preço do gás natural no Brasil: o alto volume de reinjeção do insumo nos poços produtores de petróleo em alto-mar. O tema foi um dos focos de embate entre o ministro e Jean Paul Prates quando este ocupava a presidência da Petrobras.

A reinjeção consiste em inserir de volta no poço o gás natural que existe associado às reservas de petróleo. A técnica ajuda a manter a pressão dos reservatórios e otimizar a extração de óleo, além de reduzir a queima do gás.

Dados da ANP mostram que, em junho, 56% da produção de gás natural foi reinjetada. Os números são puxados pelos campos do pré-sal.

O MME argumenta que o volume elevado de reinjeção, superior à média internacional (cerca de 25%), reduz a disponibilidade de gás natural no mercado. A pasta defende ampliar infraestruturas que permitam transportar esse insumo para o continente, o que elevaria a oferta e reduziria custos para a indústria.

A medida, porém, não é unanimidade dentro do Executivo. Para uma ala de técnicos do governo, a possibilidade de a ANP interferir nas decisões de produção das empresas representa uma quebra de contrato.

Nos bastidores, técnicos da própria ANP avaliam que o decreto extrapola competências da Nova Lei do Gás, aprovada em 2021, e pode ser considerado ilegal ao criar obrigações e restringir direitos dos produtores. No setor de óleo e gás, as medidas têm sido definidas como radicais.

A minuta indica que a agência terá competência para determinar inclusive a revisão dos planos de desenvolvimento de campos já em andamento. Responsável por mais de 87% da produção de petróleo e gás no Brasil, a Petrobras seria uma das principais afetadas, mas não a única, já que companhias estrangeiras também atuam no país.

Caso o operador não consiga atender às novas condições, o decreto diz que ele poderá “adotar medidas para transferir o direito do campo para terceiros” de forma voluntária, ou a ANP poderá “abrir processo para extinguir a concessão, por descumprimento de cláusulas relativas ao plano de desenvolvimento”.

Segundo um dos técnicos do governo ouvidos pela Folha, a revisão forçada dos planos de desenvolvimento pode ser caracterizada como quebra de contrato e não é trivial do ponto de vista técnico.

A escolha de extrair mais ou menos gás natural costuma ser feita após uma análise de viabilidade para detectar o que é mais rentável: construir o gasoduto para levar o gás ao continente ou reinjetá-lo para extrair petróleo mais rápido. Uma vez tomada a decisão, as plataformas usadas na extração são customizadas para a finalidade definida.

Se o governo interferir nas decisões de produção, as empresas teriam de arcar com custos para adaptar as plataformas ao novo plano, o que afetaria os preços. Além disso, haveria risco de afastamento de investidores e queda na produção de petróleo.

Os defensores do decreto, por sua vez, argumentam que a ANP já tem competência para fazer o acompanhamento dos planos de desenvolvimento dos campos, que não seriam imutáveis. A avaliação é que, se a empresa tiver bons argumentos, o projeto não será alterado mesmo depois do decreto.

O MME acredita ter base legal para editar a medida e tem buscado respaldo das áreas jurídicas do governo. Um dos ajustes de última hora busca justamente minimizar possíveis questionamentos, prevendo que a ANP determinará mudanças na produção “desde que haja viabilidade técnica”.

A minuta prevê ainda que a ANP poderá determinar a “adequação da capacidade operacional das infraestruturas de produção, escoamento, tratamento, processamento e transporte de gás natural”.

Na prática, a agência poderia ordenar a construção ou ampliação de estruturas, o que também é visto por técnicos como uma intervenção nas decisões empresariais. Hoje, cabe à ANP autorizar os empreendimentos, mas a escolha de fazê-los é das companhias.

Outro ponto polêmico é a previsão de que a ANP vai regular a tarifa paga por terceiros para acessar um gasoduto de outra companhia em alto-mar. Hoje, o acesso é negociado entre as partes, com mediação da agência em caso de divergência ou recusa. A crítica no setor, porém, é que a Petrobras domina essas estruturas e dificulta o acesso com cobrança cara e exigências burocráticas.

Técnicos do governo críticos do decreto reconhecem que o mercado de gás hoje é muito concentrado e há potencial para expandi-lo para fazer frente à demanda da indústria. O cenário ideal seria, de fato, reduzir a reinjeção de gás nos poços e viabilizar a infraestrutura para comercializá-lo no continente.

A avaliação dessa ala, porém, é que quaisquer medidas deveriam mirar apenas os futuros contratos, sem mexer nos planos de desenvolvimento já estabelecidos. Seria possível fazer uma concessão planejada de novas áreas, incentivando o diálogo entre diferentes empresas para a construção conjunta de um único gasoduto para servir a diferentes campos próximos uns dos outros.

Especialistas do setor, por sua vez, reconhecem que a medida é “um pouquinho intervencionista”, mas a avaliação é que a demora do regulador em aprimorar as regras do setor trava gatilhos de competitividade que poderiam ser importantes para atrair investimentos na área.

Nesse sentido, haveria justificativa para medidas mais duras do MME na direção de colocar pressão sobre a Petrobras e conseguir dinamizar o mercado de gás.

A iniciativa do programa “Gás para Empregar” tem sido apoiada por representantes da indústria.

A Abrace (Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres) afirma que a medida aponta a retomada do protagonismo do governo federal nos termos da Nova Lei do Gás. “Esse é um movimento muito positivo que pode revitalizar o que foi discutido e aprovado na lei, bem como o otimismo do mercado com a transição energética”, diz a entidade.

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