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Importância do legado humano na era da inteligência artificial

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O legado, na experiência romana, é um dos instrumentos mais refinados que o direito criou para traduzir em forma jurídica a vontade de transmitir a terceiros bens por causa de morte. Enquanto o instituto da herança em sentido estrito implica a sucessão universal — ou seja, o ingresso do herdeiro na totalidade ou em uma quota do patrimônio do falecido, com os correspondentes direitos e obrigações —, o legado situa-se em outro plano: não visa transferir todo o patrimônio ou parte dele, mas atribuir um bem ou uma vantagem determinada a um sujeito específico, o legatário [1].

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andrea marighetto francisco de assis e silva

Em outras palavras, com o legado o testador não altera a identidade dos herdeiros, mas “onera” a posição destes, impondo-lhes a execução de uma disposição particular em favor de um terceiro. Assim, o legado torna-se um meio pelo qual a vontade do falecido se manifesta de maneira direcionada, sem modificar a estrutura global da sucessão [2].

A ratio é dupla: por um lado, satisfazer necessidades pessoais ou afetivas do testador, que pode “lembrar-se” de pessoas não incluídas no acervo hereditário; por outro, garantir maior flexibilidade na arquitetura sucessória, permitindo ao disponente distribuir bens e utilidades com precisão cirúrgica. É também um modo de modular as relações sociais e familiares pós-morte, compensando dívidas morais ou reconhecendo méritos.

Na sua essência, o legado romano mostra-nos como os juristas distinguiram com grande finesse entre a transferência global da herança e a atribuição pontual de bens singulares. Os romanos, ademais, não se contentaram em conceber o legado em termos genéricos, mas desenvolveram diferentes tipologias, cada uma com uma lógica jurídica precisa.

No legatum per vindicationem, o legatário adquiria a propriedade do bem na abertura da sucessão (ipso iure). Ou seja, não havia necessidade de um ato posterior por parte do herdeiro: o bem passava automaticamente. No legatum per damnationem, o herdeiro era obrigado a cumprir a disposição, isto é, a entregar o bem ou a realizar uma prestação em favor do legatário. Este não se tornava proprietário de imediato, mas adquiria um direito de crédito contra o herdeiro.

No legatum per praeceptionem destinado a quem também possuía a qualidade de coerdeiro — o legado permitia ao coerdeiro legatário “adquirir” determinado bem antes da partilha da herança. No legatum per partitionem ou praeceptionem, o testador podia determinar que certos bens fossem atribuídos a determinados coerdeiros no momento da partilha.

Natureza imaterial

O legado reveste-se de particular importância não apenas porque permite atribuir a alguém um bem material determinado, mas também porque possibilita transferir utilidades de natureza imaterial, configurando-se como uma forma de atribuição específica e especial. Com o tempo, o legado transformou-se para assumir também o significado de um bem juridicamente tipificado, pelo qual o testador pode premiar méritos, reconhecer competências ou deixar uma marca tangível de seus vínculos pessoais e de suas escolhas de vida. É precisamente neste caráter de atribuição pontual, distinto da sucessão universal, que o legado adquire um valor social e simbólico, transformando-se em instrumento de memória e reconhecimento que sobrevive ao testador e projeta-se no futuro das relações familiares e comunitárias.

Sêneca, nas suas Epistulae Morales ad Lucilium, mostra-nos um uso figurado e de grande impacto do conceito de legado. Para o filósofo, o verdadeiro legado que o homem pode deixar não são os bens materiais, destinados a se consumirem, mas a virtude e o ensinamento que sobrevivem ao corpo e ao tempo [3]. O legado torna-se, assim, uma transmissão de valores e virtudes, um dom especial que não onera os herdeiros, mas — como o legado jurídico — os enriquece interiormente. Nesse sentido, a morte não fecha a possibilidade de doar, mas sela definitivamente o legado que cada homem entrega aos que permanecem: a memória viva de seu exemplo.

Também em Cícero, no De Officiis, vislumbra-se a ideia do legado como transmissão de valores éticos não apenas aos filhos, mas a toda a comunidade. A própria palavra legatum passa a assumir um significado mais amplo, um donum post mortem, um dom que contém igualmente um valor social e simbólico [4].

Ainda, Rudolf von Jhering, em seu célebre escrito Der Zweck im Recht, propõe uma visão em transformação do ordenamento jurídico: o Direito não apenas como um sistema cristalizado de regras, mas como um instrumento orientado a finalidades sociais, em constante evolução. É nesta perspectiva que introduz a ideia do “legado” como verdadeira metáfora transmitida no tempo às gerações futuras: cada geração deixa em herança à seguinte não apenas institutos técnicos, mas sobretudo um patrimônio de valores, princípios e orientações éticas. Assim, todo o ordenamento jurídico assume a conotação de um conjunto de legados “estratificados”, cada um representativo e testemunho das circunstâncias e do espírito de seu tempo [5].

Assim como, no legado testamentário romano, um bem era atribuído de modo específico a um destinatário, também no pensamento de Jhering a sociedade recebe das gerações anteriores bens imateriais precisos: princípios de igualdade, de liberdade, de responsabilidade coletiva, entre outros.

Se o legado jurídico e moral de que fala Jhering vale no plano coletivo e macroeconômico — onde cada geração transmite à seguinte conquistas normativas, princípios de justiça e instituições duradouras —, ele não perde valor no plano individual e microeconômico. Também a pessoa singular — física ou jurídica — transmite aos seus herdeiros, materiais ou espirituais, um legado de ensinamentos, valores e experiências vividas. O que vale para os grandes processos históricos e sociais encontra eco nas vidas cotidianas: assim como a comunidade herda do passado instrumentos para organizar a convivência, também cada indivíduo deixa uma marca, pequena ou grande, que se torna patrimônio para os que permanecem.

Em ambos os casos, o legado é testemunho e responsabilidade: transmissão daquilo que se considerou digno de ser legado, não apenas como bem material, mas como exemplo e orientação para o futuro.

Em outras palavras, do mesmo modo que as gerações transmitem um legado jurídico e moral, também as empresas, para além dos balanços e dos bens materiais, deixam uma herança que não se mede apenas em capital econômico. Cada organização entrega ao futuro um legado de valores, princípios e cultura empresarial: modos de fazer, ensinamentos, exemplos de integridade ou, em certos casos, de erros a não repetir. Se o Direito e a Economia em nível macro vivem da estratificação de conquistas coletivas, da mesma forma a vida de uma empresa compõe-se de um patrimônio imaterial que envolve tanto as pessoas em seu interior quanto a sociedade que a rodeia. Esse legado não é opcional: representa a marca duradoura que a empresa imprime no tecido social e econômico, sendo a verdadeira medida de sua continuidade e de sua reputação no tempo.

O que caracteriza de forma essencial o legado é o fato de que ele nasce e se realiza no ser humano. Somente o ser humano, dotado de consciência e de capacidade de discernimento, pode atribuir ao que deixa um significado que vai além da mera utilidade material. O legado nunca é uma simples transferência de bens: é a marca da pessoa, com suas escolhas, valores, fragilidades e virtudes. É precisamente em suas múltiplas facetas que o ser humano decide o que merece ser transmitido, o que assume o estatuto de valor, o que se transforma em ética compartilhada. Assim, cada legado, seja jurídico ou moral, não é neutro: é um testemunho vivo da complexidade humana, feito de responsabilidades, reconhecimentos e de um diálogo contínuo entre o que se possui e o que se é.

O legado realiza-se e manifesta-se sempre através de um ato de vontade e de consciência do ser humano. É uma sensibilidade própria do homem, que não apenas dispõe do que deixa, mas reconhece e atribui significado a esse gesto. Não basta que um bem passe de mãos (mesmo de natureza imaterial): para que exista legado, é necessário que o ser humano (diretamente ou por meio da pessoa jurídica, expressão da sua vontade) imprima nele a sua intenção, transformando uma simples transferência em um dom dotado de valor moral ou simbólico. Do mesmo modo, é ainda o ser humano — destinatário ou comunidade — quem percebe a importância do bem recebido, reconhecendo-o como traço, memória ou ensinamento. O legado é, portanto, uma construção eminentemente humana: um diálogo entre quem deixa e quem recebe, que se funda na consciência do significado e na ética do valor, e que se torna testemunho duradouro no seio da sociedade.

Se é verdade, como sustenta Federico Faggin, considerado o criador do microchip, que a consciência pertence unicamente ao ser humano [6], então, na época atual — marcada por um uso cada vez mais difuso e quase indiscriminado da inteligência artificial — surge uma pergunta crucial: qual será o legado que esta humanidade deixará para o futuro?

O risco é que, ao delegar cada vez mais à IA tarefas decisórias, criativas e até relacionais, se obscureça precisamente aquilo que torna o homem único: a capacidade de discernir, de atribuir valor, de realizar atos conscientes impregnados de ética. O legado das gerações não pode ser reduzido a um conjunto de algoritmos, nem a uma sequência de cálculos eficientes; ele vive da consciência que decide o que transmitir e por que.

Neste momento de transição, a humanidade encontra-se, portanto, diante de uma escolha: deixar em herança ao futuro uma sociedade moldada apenas pela lógica da eficiência técnica, ou um legado humano feito de valores, princípios e sensibilidade ética, que nenhuma máquina pode gerar por si só. É nesta tensão que se joga o sentido do nosso tempo e a responsabilidade que temos diante daqueles que virão depois de nós.

Em conclusão, importa sublinhar que o legado não é apenas expressão da centralidade do ser humano em geral, mas, sobretudo, do ser humano desta fase histórica específica. Num tempo em que a técnica ameaça sobrepor-se à consciência, torna-se essencial privilegiar o homem enquanto depositário de valores e princípios verdadeiramente humanos e autênticos. Só o ser humano é capaz de discernir, de escolher e de dar sentido ao que transmite; só ele pode transformar a herança em memória viva e responsabilidade ética.

Reconhecer essa primazia significa afirmar que o futuro não pode ser apenas resultado da eficiência dos algoritmos, mas deve permanecer enraizado na consciência, na dignidade e na criatividade do homem que, com todas as suas fragilidades e virtudes, continua a ser o verdadeiro guardião daquilo que merece ser legado.

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[1] Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 2012; BIONDI, Biondo. Diritto ereditario romano. Milano: Giuffrè, 1954; TALAMANCA, Mario. Istituzioni di diritto romano. Milano, Giuffrè, 1990.

[2] Veja-se nota §1.

[3] SÊNECA, Lucio Aneu. Cartas a Lucilio. Fundação Calouste Gulbenkian, 2021.

[4]  CICERO, Marcus Túlio. Dos Deveres (De Officiis). Edipro, 2019.

[5]  JHERING, Rudolf von. A Evolução do Direito: Zweck im Recht. Lisboa: Bastos, 1956.

[6] FAGGIN, Federico. Irreducible: Consciousness, Life, Computers, and Human Nature. John Hunt Publishing, 2024.



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