Interesse Público
Há alguns anos, neste mesmo espaço, critiquei decisões do Supremo Tribunal Federal que definiram a competência para o julgamento das contas de prefeitos para fins de inelegibilidade [1]. A questão central se referia ao julgamento de dois recursos com repercussão geral (RE 848.826 e RE 729.744), nos quais foram fixadas as seguintes teses: “para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com auxílio dos tribunais de contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores” (RE 848.826, Tema 835); e “parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo” (RE 729.744, Tema 157).
Naquela ocasião, ao situar as controvérsias que originaram os julgados no âmbito da distinção entre contas de governo e contas de gestão, resumi o cenário juspolítico me referindo às falas de ministros durante o julgamento:
“O cenário de fundo (plano dos fatos) foi delineado pelo ministro Lewandowski: ‘exacerbamento hermenêutico’ com relação à Lei da Ficha Limpa [3], com milhares de prefeitos inelegíveis por decisão de tribunais de contas. O ministro chegou a colocar em dúvida a propriedade de se falar em ‘julgamento’, mesmo diante da expressa previsão constitucional (artigo 71, II). De acordo com o presidente do STF, muitos prefeitos não têm nenhuma condição técnica de assessoramento para prestar suas contas. Falta-lhes estrutura; muitos contratam o mesmo contador de um escritório sediado na capital do estado por inexistir outra possibilidade. A maioria das contas relativas à gestão de recursos federais ou estaduais, segundo disse, são reprovadas por irregularidades formais, creditadas ao contador, e o prefeito nem fica sabendo. Em se tratando de juízo político, o ministro aduziu que prefere privilegiar a soberania popular, concentrando o julgamento na Câmara de Vereadores, do que permitir o juízo político das cortes de contas. Seguindo caminho semelhante, de forma mais incisiva, o ministro Gilmar Mendes criticou a banalização da inelegibilidade consagrada na Lei da Ficha Limpa” [2].
A proximidade das eleições e a persistência da vedação de elegibilidade para os que tenham suas contas rejeitadas – a despeito da aprovação da LC nº 184/21 – me fazem voltar ao tema [3].
Regimes distintos
A perplexidade à época dos julgamentos referidos no início deste texto dizem respeito à aparente desconsideração de duas realidades constitucionais com regimes jurídicos claramente distintos, no que se refere ao chefe do Executivo municipal: o prefeito enquanto agente político, responsável pelo ente público municipal e que presta contas de seu governo, e o prefeito enquanto ordenador de despesa, sujeito às normas de finanças públicas como qualquer outro ordenador e, como tal, à prestação de contas de gestão. A respeito das peculiaridades das contas de governo e de sua natural pertinência ao julgamento político pelo Legislativo, anota Caldas Furtado:
“Tratando-se de exame de contas de governo, o que deve ser focalizado não são os atos administrativos vistos isoladamente, mas a conduta do administrador no exercício das funções políticas de planejamento, organização, direção e controle das políticas públicas idealizadas na concepção das leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA), que foram propostas pelo Poder Executivo e recebidas, avaliadas e aprovadas, com ou sem alterações, pelo Legislativo. Aqui perdem importância as formalidades legais em favor do exame da eficácia, eficiência e efetividade das ações governamentais. Importa a avaliação do desempenho do Chefe do Executivo, que se reflete no resultado da gestão orçamentária, financeira e patrimonial. Por essa razão, ao prestar auxílio ao órgão julgador (Parlamento), a Instituição de Contas deve instruir o processo informando sobre a harmonia entre os programas previstos na lei orçamentária, o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, bem como sobre o cumprimento de tais programas quanto à legalidade, legitimidade, economicidade e alcance das metas estabelecidas” [4].
Com fundamento nas razões juspolíticas sucintamente referidas, foram fixadas as teses amplamente reconhecidas nos Temas de Repercussão Geral 157 e 835. O argumento de que prefeitos, para fins de inelegibilidade, são julgados pela Câmara de Vereadores, sempre me chamou a atenção diante do fato de que o Tribunal de Contas da União continuou julgando Tomadas de Contas Especiais em que são partes chefes do Executivo municipal, sendo que aqueles cujas contas são consideradas irregulares, obedecidos os demais requisitos, figuram na lista que ficou conhecida como “lista dos inelegíveis”.
Spacca
Em outras palavras, o raciocínio subjetivo-formal centrado na figura do prefeito – que, como tal, somente poderia ser julgado pela Câmara de Vereadores, segundo o STF – valia somente para os Tribunais de Contas dos estados e dos municípios [5].
Análise atenta do inteiro teor dos julgados já permitia perceber que a celeuma se restringia à aplicação da “pena” de inelegibilidade, que só poderia ser aplicada aos prefeitos por decisão do Legislativo municipal. Entretanto, algumas dúvidas ainda permaneciam diante do alcance da referência, no Tema 835, às contas de gestão.
ARE 1.436.197-RO
A questão foi resolvida no ARE 1.436.197-RO, no qual se discutia, em apertada síntese, se em tomada de contas especial o prefeito poderia ser julgado pelo Tribunal de Contas estadual ou se essa competência julgadora estaria reservada ao Legislativo, diante dos entendimentos do STF. O voto do relator, ministro Luiz Fux, rememora com propriedade os julgamentos anteriores para reiterar sua pertinência com a discussão sobre inelegibilidade. Destaco trechos do voto condutor:
“Com efeito, o fato de haver decisão no sentido de que compete ao Legislativo o julgamento das contas do Prefeito para fins do reconhecimento de inelegibilidade não tem o condão de impedir o natural exercício da atividade fiscalizatória, nem das demais competências dos Tribunais de Contas em toda sua plenitude, tendo em vista não só o conteúdo dos debates e votos proferidos no julgamentos dos Temas 157 e 835, mas também a autonomia atribuída constitucionalmente às Cortes de Contas. […]
“Nesse sentido, no âmbito das competências em que compete aos Tribunais de Contas o efetivo julgamento dos processos sob sua análise — excluídas as contas anuais dos Chefes do Poder Executivo municipais, para fins de inelegibilidade (Temas 157 e 835 da repercussão geral) —, há também competência própria para a definição da responsabilidade das autoridades controladas, com eventual cominação das sanções previstas em lei, ao final do procedimento administrativo. Inclusive, das decisões que imputem débito ou apliquem multa ao responsável, exsurge uma dívida líquida e certa, veiculada em uma decisão com eficácia de título executivo extrajudicial (art. 71, § 3º, CF). Feitas tais considerações acerca do desenho constitucional da Cortes de Contas, resta claro que permanece intacta — mesmo após o julgamento dos Temas 157 e 835 suprarreferidos — a competência geral dos Tribunais de Contas relativamente ao julgamento, fiscalização e aplicação de medidas cautelares, corretivas e sancionatórias, nos limites do art. 71 da Constituição, independentemente de posterior ratificação pelo Poder Legislativo. E essa competência própria alcança, inclusive, o julgamento de tomadas de contas especiais em face de ocupantes dos cargos de Chefes do Poder Executivo Municipal”.
Finalmente, no julgamento de mérito o STF reconheceu a existência de repercussão geral e decidiu a reafirmação de sua jurisprudência, entretanto fixando nova tese que contribui para o aclaramento das anteriores:
“No âmbito da tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de Chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasse de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo.”
Constituinte acertou
O novo julgado é importante e esclarecedor, entretanto continua permitindo entendimento que considero equivocado: o julgamento das contas anuais de gestão continua a ser acometido ao Legislativo Municipal, a despeito da clareza dos dispositivos constitucionais que tratam da gestão pública. Retomando o escrevi em 2016, não disponho de estudos que possam indicar se as decisões do STF derrubaram ou aprimoraram a eficácia de Lei da Ficha Lima. De qualquer forma, entendo que o Constituinte foi sábio ao distinguir a arena política, onde se julgam as contas do governo, da arena administrativa, onde devem ser julgados tecnicamente os atos de gestão. Que essa questão possa ser reapreciada pelo Supremo Tribunal Federal.
[1] https://www.conjur.com.br/2016-set-01/interesse-publico-ficha-caiu-trocando-seis-meia-duzia-controle-gestao-publica/
[2] Idem
[3] “Art. 1º. São inelegíveis: I – para qualquer cargo: […] g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição”(Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010) (LC 64/90). A LC nº 184/21 inseriu o §4º-A no art.1º da LC 64/90, com a seguinte redação: “§ 4º-A. A inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso I do caput deste artigo não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa”.
[4] FURTADO, José de Ribamar Caldas. Os regimes de contas públicas: contas de governo e contas de gestão. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 9, n. 42, mar./abr. 2007.
[5] Em Resolução destinada a orientar os Tribunais de Contas sobre os efeitos das teses do STF, a ATRICON recomendou:“Art. 1° – No processo de contas de gestão em que o Prefeito figurar como ordenador de despesa, o Tribunal de Contas emitirá: I – parecer prévio, que instrumentalizará o julgamento pela Câmara Municipal, para os fins do art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990 (alterado pela Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010); e II – acórdão de julgamento, para os demais efeitos, como, por exemplo, imputação de débito, aplicação de multa, entre outros. § 1º – O parecer prévio de que trata o inciso I do caput deste artigo aplica-se somente ao prefeito, não abrangendo os demais ordenadores de despesa do Município, cujas contas são julgadas exclusivamente pelo Tribunal de Contas. § 2º – Não se aplica a emissão do parecer prévio previsto neste artigo, ainda que figure o prefeito como responsável, nos processos cujo objeto seja a fiscalização e o julgamento da aplicação de recursos recebidos por meio de transferências voluntárias e de transferências fundo a fundo” (Resolução Atricon nº 01/2018).