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Inteligência artificial como suporte à decisão judicial no século XXI

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A metáfora do juiz Hércules, idealizada por Ronald Dworkin em sua teoria do Direito como integridade, projeta um modelo de magistrado dotado de capacidades sobre-humanas: memória ilimitada, conhecimento exaustivo do ordenamento jurídico e compromisso incondicional com a coerência e a moralidade do sistema.

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Trata-se de uma figura ficcional que, ao decidir casos difíceis, seria capaz de consultar a totalidade das normas, princípios, precedentes e valores constitucionais, emitindo decisões que melhor preservem a integridade da prática jurídica como um todo. Esse ideal interpretativo, embora inalcançável na experiência concreta, serve como parâmetro teórico para decisões judiciais que dialoguem com o passado do Direito e preservem sua racionalidade interna.

No contexto contemporâneo, entretanto, os avanços da tecnologia, especialmente da inteligência artificial, oferecem novos contornos a essa figura. O que antes era concebido como um exercício puramente imaginativo ganha concretude com o desenvolvimento de sistemas algorítmicos capazes de processar grandes volumes de dados normativos, jurisprudenciais e doutrinários.

A IA não possui discernimento moral, tampouco substitui o juízo de valor humano, mas apresenta-se como instrumento poderoso de apoio à atividade jurisdicional, permitindo decisões mais rápidas, coerentes, baseadas em ampla consulta a precedentes e padrões jurisprudenciais.

No Brasil, o uso da inteligência artificial no Judiciário já é realidade. O STF conta com o Projeto Victor, que realiza a triagem automatizada de recursos extraordinários com base em temas de repercussão geral. Além dele, ferramentas como o RAFA, que classifica processos conforme os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, o VitórIA, que agrupa processos por similaridade temática, e o MARIA, que oferece apoio redacional automatizado, já demonstram a capacidade da tecnologia em estruturar e otimizar o processo decisório. No âmbito regional, destacam-se iniciativas como o sistema ALEI-1G, que atua na triagem de processos e elaboração de minutas no TRF da 1ª região, por meio do NIAJus – Núcleo de Inteligência Artificial Judiciária, no Distrito Federal.

Essas tecnologias não proferem julgamentos autônomos, mas funcionam como assistentes digitais que otimizam o trabalho dos magistrados, ampliando sua capacidade de analisar informações relevantes de forma sistêmica. O art. 926 do CPC, ao determinar que a jurisprudência deve ser estável, íntegra e coerente, estabelece um compromisso normativo que se aproxima significativamente da teoria da integridade de Dworkin.

A IA, ao identificar padrões decisórios e inconsistências, pode contribuir diretamente para a realização desse dever, fornecendo subsídios para que o julgador mantenha a racionalidade e a previsibilidade das decisões.

Contudo, essa integração entre tecnologia e jurisdição impõe novos desafios, especialmente quanto à transparência e à possibilidade de impugnação de decisões parcialmente construídas com base em algoritmos. O art. 489, §1º, do CPC exige fundamentação clara, enfrentando todos os argumentos relevantes trazidos pelas partes.

Se o magistrado se vale de sugestões oferecidas por IA, é essencial que se compreenda como essas sugestões foram formadas, com base em quais dados, padrões e margens de confiabilidade. A opacidade algorítmica representa risco à ampla defesa e ao contraditório, razão pela qual se exige o desenvolvimento de sistemas explicáveis, auditáveis e transparentes, que permitam o controle jurisdicional e democrático.

Nesse cenário, o papel dos procuradores das partes também sofre transformação. Advogados, membros do Ministério Público e procuradores em geral, devem desenvolver competências técnicas que lhes permitam compreender o funcionamento básico dos algoritmos utilizados, a fim de exercer adequadamente o direito de impugnação.

Não basta mais apenas conhecer a legislação e a jurisprudência: é preciso identificar possíveis falhas na interpretação algorítmica, viéses de dados e fundamentos decisórios incompatíveis com o ordenamento jurídico. Mais que isso, as partes também podem utilizar a IA como instrumento proativo de atuação processual, empregando sistemas que sugerem precedentes relevantes, simulam probabilidades de êxito, identificam linhas decisórias dominantes e contribuem para a elaboração de peças processuais mais persuasivas.

Esse movimento de simetria tecnológica reforça o contraditório e a paridade de armas, ampliando o potencial argumentativo das partes diante de um Judiciário cada vez mais informatizado. Se o juiz pode, com auxílio da IA, se aproximar das capacidades do juiz Hércules, os procuradores também devem se tornar operadores jurídicos mais sofisticados, conjugando o saber jurídico tradicional com competências digitais e analíticas. A IA não deve ser vista como substituta da jurisdição, mas como ferramenta que potencializa a capacidade decisória humana, garantindo maior racionalidade, previsibilidade e coerência às decisões judiciais.

Em suma, a figura do juiz Hércules deixa de ser apenas uma utopia filosófica e passa a representar um horizonte possível com o uso consciente e ético da inteligência artificial. A tecnologia, quando bem empregada, não julga, mas amplia a capacidade de julgamento.

Essa transformação, no entanto, deve ser conduzida com prudência, com respeito aos princípios constitucionais, às garantias processuais e aos direitos fundamentais. O desafio do presente não é substituir o juiz humano, mas oferecer-lhe melhores instrumentos para que julgue com mais tempo, mais dados e, sobretudo, com mais integridade.

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