Denis Henrique Pinheiro Salvadeo, Ney Lemke
Até pouco tempo atrás, imaginar um dispositivo computacional capaz de interagir com as pessoas utilizando linguagem natural, gerar imagens, áudios e vídeos, resolver problemas complexos que exigem a identificação automática do raciocínio necessário até a solução (sem a necessidade de programar os passos) e adaptar-se em termos de tempo de execução, ou da solicitações do usuário, era algo restrito ao campo da imaginação, retratado apenas em livros e filmes de ficção científica.
Atualmente, a maior capacidade de processamento computacional, combinada à geração e disponibilização massiva de dados multimídia e ao surgimento de novas técnicas, métodos e arquiteturas de Inteligência Artificial (IA), permitiu o desenvolvimento de modelos poderosos, capazes de manipular grandes volumes de dados. Esses modelos têm sido integrados nas mais diversas aplicações e finalidades. O acesso a tais modelos avançados foi amplamente facilitado, tornando-se tão simples quanto realizar uma busca no Google, e seu uso se popularizou. No entanto, essa popularização não representou uma efetiva democratização, já que a maioria dos usuários provavelmente não possui a capacitação necessária para explorar todo o potencial dessas ferramentas.
Atualmente, de forma direta ou indireta, e estejam ou não conscientes disso, praticamente todas as pessoas são impactadas pela ação da Inteligência Artificial. Esse impacto ocorre em diversas situações: ao utilizarmos sistemas de conversação baseados em modelos de linguagem (como ChatGPT, Gemini, DeepSeek); ao navegarmos pelas redes sociais; ao acessarmos serviços de streaming para assistir a filmes; ao usarmos aplicativos de música com sistemas de recomendação baseados em perfis de usuários; ou ao empregarmos sistemas de transporte inteligentes, entre tantas outras aplicações.
É importante destacar que o uso mal-intencionado dessa tecnologia pode acarretar uma série de riscos, incluindo a manipulação ou o direcionamento de opiniões, a aplicação de golpes financeiros, a consecução de ataques coordenados contra a democracia ou indivíduos, a restrição de acesso a empregos e serviços públicos e outros prejuízos que podem comprometer a garantia a direitos humanos.
Por outro lado, é essencial compreender que sua aplicação já está incorporada ao cotidiano e representa um caminho sem volta, em especial devido aos inúmeras oportunidades e benefícios que ela proporciona. A Inteligência Artificial é uma tecnologia disruptiva, com potencial para ser utilizada em qualquer área do conhecimento.
Como Universidade de referência, a Unesp possui a expertise e a capacidade para liderar, propor, implementar e demonstrar o uso responsável e ético da Inteligência Artificial na sociedade, por meio de ações em todas suas dimensões de atuação: o ensino, a pesquisa, a extensão, a cultura, a gestão e a inovação.
Para promover essa iniciativa, propomos a criação de uma Unidade Complementar da Unesp, denominada ‘Instituto de Inovação em Inteligência Artificial’ (I3A). A visão é que o I3A atue como um centro de referência em soluções inovadoras de IA voltadas para a resolução de problemas do mundo real.
Entre suas metas de atuação, destacam-se as seguintes: impulsionar pesquisas e aplicações em IA; fomentar a colaboração interdisciplinar; capacitar profissionais altamente qualificados no desenvolvimento e uso de IA; promover impacto social por meio de iniciativas baseadas em IA; e gerar produtos, serviços e ações de divulgação fundamentados em inteligência artificial.
Como princípio estratégico, a proposta do I3A é articular as estruturas já existentes na Unesp, conectar laboratórios e docentes, reunir o corpo docente especializado em IA e seus esforços individuais, evitar a duplicação de trabalhos e promover a integração entre especialistas em IA, especialistas em domínios específicos e parceiros. Essa articulação visa o fomentar o desenvolvimento das áreas de pesquisa, ensino, extensão, inovação e aplicações relacionadas à Inteligência Artificial.
O I3A será organizado em uma estrutura envolvendo três grupos de laboratórios, sendo um deles o laboratório sede, e empregando-se laboratórios associados (preferencialmente já existentes na Unesp, embora novos possam ser criados):
- Laboratórios de Inteligência Artificial (LIAs): laboratórios especializados no desenvolvimento de novas metodologias, técnicas, processos, tecnologias de IA e Ciência de Dados, abrangendo as várias subáreas da IA e áreas correlatas.
- Laboratórios de Integração, Aplicação e Impacto de IA (LIAs+): laboratórios focados em áreas de aplicação, interessados em investigar, integrar e utilizar metodologias e tecnologias de IA de maneira frequente e colaborativa, incorporando-as em suas pesquisas, ações de ensino, extensão, inovação e aplicações. Esses laboratórios têm como objetivo principal promover o impacto da IA na sociedade. Exemplos de áreas de atuação incluem Educação, Saúde Humana e Animal, Tecnologias Assistivas, Agricultura, Políticas Públicas, Tecnologias Sociais, Cidades Inteligentes, Meio Ambiente e Indústria.
- Laboratório do Futuro (LAF): sede do I3A, com responsabilidades que incluem o gerenciamento das estruturas físicas da sede, o fornecimento de apoio administrativo ao Instituto, a organização e gestão de programas, projetos e ações envolvendo IA, o apoio à captação de recursos e oportunidades, além da conexão entre LIAs, LIAs+ e parceiros para o desenvolvimento de projetos e iniciativas.
Um levantamento identificou na Unesp mais de 50 docentes atuando na área de Inteligência Artificial, ou em áreas correlatas, e suas respectivas aplicações. Quatro unidades da Unesp lideram pesquisas nesse tema, especialmente no desenvolvimento de novas técnicas, métodos e tecnologias: a Faculdade de Ciências de Bauru, a Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente, o Instituto de Geociências e Ciências Exatas de Rio Claro e o Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto. Além disso, destacam-se núcleos relevantes no Instituto de Biociências de Botucatu e o Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp em Sorocaba.
Ressalta-se também que 15 das 34 unidades universitárias da Unesp possuem pelo menos um docente especializado na área, totalizando 13 laboratórios ou grupos de pesquisa em atividade. A Unesp conta ainda com o Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação, além de outros programas que também desenvolvem pesquisa e formação na área.
Dentre as diversas ações propostas para o I3A, destacam-se os seguintes exemplos:
- Capacitação em ferramentas de IA: voltada para toda a comunidade da Unesp (docentes, discentes e servidores técnico-administrativos), com o objetivo de qualificar e empoderar as pessoas para que possam ampliar suas capacidades humanas com essas novas ferramentas, aplicando-as em ações administrativas, pesquisa, ensino, extensão e gestão, além de oferecer suporte contínuo a essas atividades.
- Desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares de alto impacto: projetos que integram IA com impacto social, ambiental e econômico significativo.
- Apoio ao ensino: contribuição para cursos de graduação e pós-graduação, promovendo a inserção de habilidades em IA em diferentes áreas do conhecimento.
- Formação de profissionais em IA: criação de programas de pós-graduação lato sensu (como residências tecnológicas e MBAs em IA), bem como programas de pós-doutorado direcionados para doutores de diversas áreas.
- Apoio estratégico às instâncias da Unesp: suporte à Reitoria, Pró-Reitorias e ao Escritório de Gestão de Dados em atividades envolvendo IA.
- Estímulo à inovação: desenvolvimento de empresas-filhas da Unesp baseadas em inteligência artificial.
- Promoção de ciência aberta e conexão com a sociedade: criação de assistentes virtuais que facilitem a busca e acessibilidade de trabalhos científicos e ações extensionistas, adaptando a linguagem às necessidades dos usuários.
- Inteligentificação de produtos, serviços e processos: desenvolvimento de novas funcionalidades para os sistemas da Unesp, em colaboração com a Coordenadoria de Tecnologia da Informação (CTInf).
- Estratégia e advocacy em IA: promoção da estratégia de IA da Unesp e apoio ao desenvolvimento de legislações relacionadas ao tema.
- Ações educacionais para a comunidade externa: organização de palestras, workshops e cursos abordando os riscos, conceitos e oportunidades associados à inteligência artificial.
Vale ressaltar que a proposta do I3A teve origem na concepção do Laboratório do Futuro (LAF), idealizado pela Profa. Maysa Furlan durante sua gestão como Vice-Reitora, com apoio da CTInf.
Essa proposta já contemplava diversas ações, como as mencionadas anteriormente, e abrangia mais iniciativas do que as que poderiam ser conduzidas por um único laboratório. Assim, após unir esforços e ideias com outros docentes da área de IA — que também buscavam a criação de um centro de IA na Unesp ou estavam desenvolvendo iniciativas relacionadas ao tema —, como os professores João Paulo Papa (FC/Bauru), Daniel Pedronette (IGCE/Rio Claro), Wallace Casaca (IBILCE/São José do Rio Preto), Cassio Oishi (FCT/Presidente Prudente) e Ronaldo Correia (FCT/Presidente Prudente), elaboramos e submetemos a proposta para a criação do I3A.
Muitas dessas iniciativas já estão em andamento ou com documentação avançada com a perspectiva de implementação ainda em 2025, incluindo discussões com a Pró-Reitoria de Pós-Graduação.
Com a divulgação do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, o crescente investimento em IA por instituições públicas e privadas, a alta demanda por essa tecnologia, seu enorme potencial e a necessidade de formar cidadãos responsáveis, éticos e conscientes quanto ao uso da IA, fica clara a urgência de uma resposta da Universidade frente a esses desafios e oportunidades.
A criação do I3A representa essa resposta, com benefícios tanto para a Unesp quanto para a sociedade.
Ney Lemke é professor-associado no Instituto de Biociências de Botucatu e lidera a Coordenadoria de Tecnologia da Informação (CTInf)
Denis Henrique Pinheiro Salvadeo é professor-associado no Instituto de Geociências e Ciências Exatas de Rio Claro e integrante da Coordenadoria de Tecnologia da Informação (CTInf)