Quem já leu qualquer texto gerado por inteligência artificial (IA) terá percebido que, por mais bem escrito que esteja, ali falta alguma coisa. Um it, um borogodó — um jenessequá, diria o Veríssimo. Mas como haveria de ter alma algo criado por máquina? Os avanços nessa área têm sido espetaculares, e não há de demorar até que ChatGPT, Gemini, Copilot & companhia consigam emular o lirismo do José Eduardo Agualusa e do Leo Aversa, a sensibilidade da Cora Rónai e da Martha Batalha, a força da Ruth de Aquino, a exuberância do Joaquim Ferreira dos Santos, a leveza do Nelson Motta. Emular é uma coisa; chegar lá são outros quinhentos.
Há programas que ajudam a detectar o DNA da IA, mas basta usar a intuição. Seus textos são “de baixa perplexidade” — tão previsíveis quanto as canções das duplas sertanejas. Têm um ritmo quase robótico. Carecem de originalidade, reproduzem modelos, sem saber ainda como dar o pulo do gato. Sim, a IA usa metáforas; só não é capaz de inventá-las. Mas tem uma grande vantagem: é programada para ser compreendida por todos, não apenas pelos iniciados. Não faz pose de intelectual, não quer abafar ninguém. É o oposto da linguagem acadêmica — esta, igualmente anódina, mas pretensiosamente hermética.
Em artigo na Folha de S.Paulo — sobre o risco de a IA contribuir para a perpetuação de informações racistas, misóginas e estereotipadas –, escreveu a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco:
— O tema da inteligência artificial e ela mesma enquanto tecnologia têm nos atravessado cada vez mais enquanto sociedade.
Enquanto leitor, fiquei confuso — e com esses dois “enquanto” (isso já não tinha saído de moda?) atravessados na garganta.
— Há muitas camadas nos procedimentos algorítmicos — prossegue a ministra (“muitas camadas” já não tinha virado meme?). — Mas precisamos enfrentar com coragem essa complexidade que o mundo contemporâneo nos apresenta. Especialmente porque convive e se cruza com questões antigas, que ainda fazem parte da nossa realidade e cujo enfrentamento é central para este governo.
Sim, é preciso enfrentar com coragem esse enfrentamento. Rolando Lero não diria melhor.
— Como doutoranda em linguística aplicada, sei que o contexto de uso das palavras faz toda a diferença — continua.
E é aqui que a porca torce o rabo. Como podem os ditos progressistas, sabendo disso, pleitear uma linguagem inclusiva (para todas, todos e todes), não racista (sem “buracos negros” ou “esclarecimentos”), não opressora (admitindo discordâncias nominais e regicídios verbais) e persistir no uso desse dialeto empolado, elitista? Será que não era também a isso que Mano Brown se referia ao dizer que a esquerda não está falando a língua do povo?
Na contramão da academia, o Poder Judiciário começa a se mobilizar pela simplificação do juridiquês de Suas Excelências. A ideia é que se expressem de forma acessível — concisa e objetiva — aos 200 milhões de cidadãos não versados no seu jargão, que sempre precisam de quem lhes traduza os votos, acórdãos, despachos, sentenças.
Seria uma boa oportunidade para decolonizar o esquerdês, cuja potência atravessa em muitas camadas nossos corpos vulnerabilizados enquanto portadores de saberes e afetos subalternizados — seja isso lá o que for. Ou, então, pedir à IA que gere seus textos. Serão tão sem alma quanto, mas bem mais inclusivos.