
A cena se repete em muitas casas brasileiras: as crianças deslizam o dedo na tela, enquanto o caderno da escola continua quase intacto. Pela primeira vez na série histórica da pesquisa Retratos da Leitura, 53% dos brasileiros não leram nem parte de um livro (impresso ou digital) nos últimos três meses. Antes de culpar as telas, vale olhar para o que a ciência já sabe sobre o nosso cérebro.
Pesquisas da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, publicadas na Frontiers in Psychology, mostram que escrever à mão gera padrões de conectividade cerebral muito mais amplos do que digitar. Escrever envolve movimento fino, coordenação, planejamento e pausa. E isso não se trata de nostalgia, mas de neurociência.
O que está acontecendo com o nosso cérebro leitor
A mesma pesquisa traz dados reveladores. Entre quem lê, 57% preferem o formato impresso, enquanto 22% ficam com o digital. Uma das razões aparece em levantamentos recentes sobre leitura digital: 68% interrompem mais a leitura para checar mensagens quando estão numa tela; 49% dizem compreender melhor a história quando leem no papel.
Mas talvez o mais preocupante esteja no pano de fundo: 36% dos respondentes apontam alguma dificuldade de habilidade, como falta de concentração ou compreensão limitada. E a “falta de paciência e foco para ler” saltou de 18% em 2007 para 40% em 2024. Essa questão vai além de uma mudança comportamental, é fisiologia moldada pelo ambiente.
E aqui está a costura que fecha o sentido de tudo isso. O estudo norueguês sugere que a escrita à mão treina redes cerebrais responsáveis pela atenção sustentada e pela capacidade de selecionar o que importa, que são as mesmas redes que usamos para ler com profundidade. Quando o caderno desaparece, não é só uma ferramenta que está sendo descartada, é um treino cognitivo que está sendo perdido. O cérebro que escreve é o mesmo cérebro que, depois, tenta ler.
Não estamos apenas com dificuldade de ler. Estamos com dificuldade de ler porque paramos de praticar o ato (escrever) que treina o cérebro para a leitura focada.
Na sala de aula: o equilíbrio possível
Nas escolas, o alerta se repete. A porcentagem de brasileiros que liam em sala de aula caiu de 35% em 2007 para 19% em 2024, o menor índice da série histórica. Eduardo Saron, da Fundação Itaú, lembra que inverter esse movimento é essencial para qualquer projeto de aprendizagem de longo prazo.
Professores percebem isso de perto. Quando os estudantes usam teclado, conseguem registrar quase tudo o que o docente fala. A neurocientista Audrey van der Meer descreve que, assim, a informação tende a “entrar pelos ouvidos e sair direto pelos dedos”, sem pausa para reflexão. Na escrita à mão, isso é impossível: o aluno precisa selecionar, resumir, conectar, que é exatamente o esforço cognitivo que consolida o conhecimento.
Por isso muitas escolas brasileiras apostam no modelo híbrido: livro impresso para aprofundar, digital para enriquecer e ampliar. Não é uma disputa entre mundos, mas um casamento delicado de ritmos diferentes da mente.
O que fazer em casa?
Nada de demonizar a tecnologia. Estudos mostram que escrever com caneta digital ativa mais redes cerebrais do que digitar, mas também confirmam que o papel segue imbatível em foco e memória. O atrito do grafite, a posição da mão, a ausência de notificações, tudo isso cria uma qualidade de atenção que a tela não reproduz totalmente.
Algumas práticas simples podem ajudar a recuperar esse gesto que organiza o pensamento:
1. Momentos analógicos protegidos
Reserve tempos de leitura e de registro em papel, sem notificações nem distrações. Ilhas de silêncio sustentam a atenção.
2. Caderno de descobertas
Convide as crianças a registrar ideias, perguntas e desenhos. Escrever à mão ajuda a estruturar raciocínios e ampliar a criatividade.
3. Lista de compras escrita juntos
Parece banal, mas envolve memória, decisão e categorização. É treino cognitivo disfarçado de rotina.
4. Bilhetes e cartas
Num mundo de áudios e emojis, um bilhete escrito vira quase um presente. Letras ocupam espaço e presença.
O futuro é híbrido e não binário
A edição mais recente da Retratos da Leitura trouxe uma novidade: pela primeira vez, foram medidos quantos livros infantis existem nas casas e como as crianças enxergam os hábitos de leitura dos pais. O recado não poderia ser mais claro: as crianças leem melhor quando veem adultos lendo de verdade.
O futuro da aprendizagem passa por combinar, de forma estratégica, os dois mundos. Papel para compreender com profundidade, criar e memorizar. Digital para pesquisar, ampliar e organizar. O Brasil perdeu 6,7 milhões de leitores em quatro anos, um movimento que reforça a necessidade de proteger o gesto que mais treina nossa atenção e memória: o ato de escrever no papel.
Para fazer esta semana
Proponha um desafio em família. Cada pessoa escreve, à mão, uma página por dia sobre qualquer coisa. No domingo, cada um escolhe um trecho para compartilhar. Talvez o mais surpreendente não seja o que foi escrito, mas o que o gesto desperta, a presença, a memória, o silêncio, em um tempo em que quase tudo acontece com um toque. O caderno continua vivo porque, de algum modo, ele preserva aquilo que a pressa tenta apagar.

