Por que o Jurídico não pode ficar de fora
A inteligência artificial saiu do laboratório. Ela não é mais um tema restrito a TI e inovação. Hoje, quando IA toma decisões sobre crédito, detecta fraudes, seleciona candidatos, valida compliance, atende clientes ou automatiza processos, ela produz efeitos jurídicos diretos e imediatos.
Esses efeitos são reais: riscos aos direitos de pessoas, assimetrias informacionais que favorecem quem controla o modelo, decisões que não podem ser explicadas quando contestadas, responsabilidades contratuais alocadas de forma inadequada, e danos à reputação que podem ser irreversíveis.
Diante disso, o departamento jurídico enfrenta uma escolha. Pode continuar atuando como “revisor de cláusulas” – uma função reativa, que chega tarde demais. Ou pode assumir um papel estrutural: converter incerteza técnica em segurança jurídica, transformando complexidade em governança.
A premissa é simples, mas frequentemente negligenciada: IA em produção é risco em escala. Quando o sistema erra, discrimina, se comporta de forma inesperada, expõe dados ou se torna tão opaco que impossibilita explicação e contestação, o litígio é apenas o efeito tardio. O risco real nasce muito antes.
Ele começa na seleção do fornecedor, passa pela arquitetura de dados, pela documentação técnica, pelo desenho de supervisão humana – e, sobretudo, pelo contrato, entendido não como formalidade de compra, mas como instrumento vivo de governança.
O cenário regulatório: não é mais abstrato
No Brasil, a ANPD – Autoridade Nacional de Proteção de Dados já trata de forma explícita o uso de dados pessoais para desenvolvimento de modelos de IA, inclusive dados de terceiros e IA generativa. O foco está em questões práticas: qual é a base legal para usar esses dados? Como comunicar isso ao titular? Quais são os riscos quando dados são reutilizados para finalidades diferentes?
Mas o ponto decisivo é este: a regulação não é teórica. Em 2 de julho de 2024, a ANPD determinou a suspensão imediata de uma política de privacidade relacionada ao uso de dados pessoais para treinamento de IA generativa. Essa decisão ilustra um custo real e concreto: desenho inadequado de tratamento de dados e comunicação ao titular não é apenas uma falha técnica – é um risco regulatório que pode paralisar operações.
Internacionalmente, um padrão de exigências está se consolidando e inevitavelmente repercute nas cadeias contratuais globais. Reguladores e instituições financeiras em todo o mundo convergem em torno de alguns elementos-chave: documentação técnica robusta, gestão contínua de riscos ao longo de todo o ciclo de vida do modelo, registros detalhados (logs), transparência sobre como o sistema funciona, e controles proporcionais ao risco envolvido.
A União Europeia, por exemplo, exige para sistemas de alto risco uma lógica de gestão contínua de risco – não um checklist pontual que se faz uma vez e se esquece. Exige também documentação técnica prévia e atualizada como condição de conformidade legal.
Frameworks técnicos amplamente adotados, como o NIST AI RMF – NIST AI Risk Management Framework, consolidam uma linguagem comum para governança de IA. Esse framework enfatiza riscos, impactos e confiabilidade – e, na prática, virou requisito de due diligence e de contrato.
Para instituições reguladas – especialmente instituições financeiras – há um vetor adicional de pressão. O Banco Central do Brasil, em sua agenda regulatória, tem sinalizado linhas de trabalho associadas a riscos, inovação e integridade do sistema. Análises de mercado destacam expressamente a avaliação de riscos e impactos do uso de IA por instituições financeiras.
A mensagem é clara: IA não é mais um tema de inovação. É um tema de risco e supervisão.
O mandato do Jurídico: três camadas de governança
Diante desse cenário, o departamento jurídico precisa operar em três camadas complementares.
Primeira camada: go/no-go – a condição de entrada em produção
Antes que qualquer sistema de IA entre em operação, deve haver evidências técnicas mínimas e salvaguardas contratuais. Não se trata de burocratizar inovação. Trata-se de reconhecer uma verdade simples: sem essas evidências e sem essas cláusulas, a organização está apenas terceirizando risco sem capacidade de provar que agiu com diligência.
Na prática, isso significa: sem um pacote de provas técnicas e sem cláusulas mínimas bem definidas, não há produção. Ponto.
Segunda camada: dados como vetor de risco
Quando se fala de IA, dados não são apenas insumo. São um vetor de responsabilidade. Por isso, a agenda jurídica deve exigir inventário e classificação clara dos dados, base legal para seu uso, finalidade específica, controles de acesso, segregação de ambientes de desenvolvimento e produção.
Mas há um ponto crítico que frequentemente passa despercebido: o que acontece com os dados depois? Se o fornecedor puder reutilizar “dados do cliente” ou outputs para retreinar seus modelos, o risco se torna estrutural. Extrapolação de finalidade, obscuridades sobre o que o modelo aprendeu, disputas sobre titularidade de dados e segredos comerciais – tudo isso torna-se possível.
Por isso, disciplina explícita sobre reuso para treinamento não é detalhe. É essencial.
Terceira camada: auditabilidade, métricas e monitoramento
Drift (quando o modelo começa a se comportar diferente do esperado), vieses, robustez, acurácia mínima, rastreabilidade e logs não podem ficar como recomendações em anexos técnicos. Devem ser obrigações contratuais, com SLAs claros, critérios de aceitação definidos e direitos de auditoria garantidos.
Do contrário, a organização compra uma promessa e opera sem prova.
O que negociar: reduzindo assimetria informacional
O principal problema nos contratos em que a IA é o objeto, é a assimetria. O fornecedor conhece o modelo; o cliente assume os impactos. O papel do Jurídico é reduzir essa assimetria com definições precisas, obrigações objetivas e claras, cláusulas penais efetivas e condições resolutivas que funcionem de verdade.
As definições contratuais devem ser precisas. O que é “Modelo”? O que é “Output”? O que são “Dados do Cliente”? Como se distinguem “Treinamento”, “Inferência”, “Ajuste fino” e “Retreinamento”? O que será registrado em “Logs”?
Essas definições parecem técnicas, mas são jurídicas. Nelas deve ficar claro o que o fornecedor pode fazer com dados e outputs, e o que será auditável.
Deve-se exigir, ainda, um pacote de evidências proporcional ao risco e ao uso. Documentação do sistema, descrição e origem dos datasets, testes de vieses, avaliações de robustez e segurança, registros de treinamento quando aplicável, parâmetros de monitoramento e limitações conhecidas. A terminologia pode variar (model cards, datasheets, relatórios de avaliação), mas o objetivo é constante: evidenciar capacidade de governança e permitir avaliação independente.
No núcleo econômico-operacional, necessário que sejam estabelecidos e definidos SLAs e KPIs verificáveis. Disponibilidade, tempo de resposta, acurácia mínima, e – quando aplicável – métricas periódicas de drift e vieses, com revalidação obrigatória. Não basta “melhor esforço”. É muito relevante que se estabeleçam padrões mensuráveis e consequências reais: créditos, correção, suspensão, rollback e rescisão por inadimplemento.
Imprescindível que se garanta direitos de auditoria técnica. Acesso a logs relevantes, possibilidade de auditoria por terceiro independente, obrigações de cooperação em testes e investigações de incidentes. Sem isso, a organização não consegue comprovar diligência nem estabelecer nexo entre falha e causa.
Detalhe fundamental é a atenção aos aspectos relacionados à continuidade e saída. Trocar de fornecedor de IA pode ser difícil por dependência de dados, configurações e integrações. O contrato deve prever portabilidade de artefatos, remoção de dados e um plano de transição claro.
E, finalmente, a previsão de responsabilidade de forma coerente. Limites simbólicos, carve-outs amplos e ausência de seguro transformam a contratação em risco provável para o cliente. Responsabilidade deve ser proporcional ao risco.
Governança interna: o que o contrato não substitui
Mesmo o melhor contrato falha se a organização não investir em governança interna. Três medidas, em geral, produzem maior retorno de controle.
Primeiro: um comitê de IA com poder vinculante. Jurídico, compliance, TI, negócio, segurança e dados, com competência sobre entrada em produção e escalonamento de incidentes. O objetivo não é centralizar decisões, mas impedir que decisões de risco “escapem” por pressa ou fragmentação organizacional.
Segundo: AIA – Avaliação de Impacto de IA integrada à LGPD e aos riscos do negócio. Na prática, é traduzir para IA uma lógica de avaliação de impacto e accountability: finalidade do uso, bases legais, riscos a direitos das pessoas, mitigadores, testes realizados, supervisão humana, plano de resposta a incidentes e critérios de aceitação. Para usos sensíveis – decisões sobre pessoas, crédito, fraude, perfis – a AIA deve ser condição suspensiva para produção.
Terceiro: registro e versionamento. Quem usou o sistema, quando, qual versão do modelo, quais entradas e saídas relevantes, quais parâmetros foram ajustados, quais alterações foram feitas. Esse aparato é essencial para rastreabilidade, auditoria, defesa regulatória e resposta a eventos. Sem trilha, a organização opera no escuro e perde capacidade de governar seu próprio risco.
Conclusão: de centro de custo a infraestrutura de governança
O Jurídico que permanece reativo – limitado a ajustar cláusulas genéricas – tende a operar como centro de custo. Captura o risco tarde demais: quando o incidente já ocorreu, o regulador já demandou explicações, e o litígio já está precificado.
O Jurídico eficaz atua diferente. Funciona como infraestrutura de governança. Converte complexidade técnica em obrigações contratuais executáveis, métricas verificáveis e processos internos auditáveis.
Não se trata de sofisticação teórica. É requisito mínimo para operar com previsibilidade, preservar confiança institucional e transformar conformidade em vantagem competitiva.
IA é risco em escala. Governança é como você o transforma em oportunidade.
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Referências essenciais
ANPD. Nota Técnica 27/24 – Tratamento de dados de terceiros para IA generativa. Serviços e Informações do Brasil.
ANPD. Atuação fiscalizatória sobre uso de dados para treinamento de IA. Reuters.
NIST. AI Risk Management Framework (AI RMF 1.0). NIST Publications.
União Europeia. EU AI Act – Exigências de gestão de risco e documentação técnica para sistemas de alto risco. AI Act Service Desk.
Banco Central do Brasil. Agenda e prioridades regulatórias; referências sobre avaliação de riscos de IA no setor financeiro.

