Opinião
No último dia 7 de agosto, encerrou-se o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 7.177-PR, que fixou duas teses. A primeira, objetiva, que reconheceu ser “constitucional a criação de órgão para assessoramento e consultoria jurídica de Tribunal de Contas, podendo, todavia, realizar a representação judicial da Corte exclusivamente nos casos em que discutidas prerrogativas institucionais ou a autonomia do TCE”. A segunda, subjetiva, que reconheceu ser “inconstitucional, por violação ao art. 37, II, da CF/1988, o aproveitamento de servidores titulares de cargos públicos diversos para atuarem, por designação, como advogados do Tribunal de Contas”.
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O alcance do julgado vai além da reiteração de que o assessoramento jurídico e a legitimação judicial extraordinária não podem ser exercidos por qualquer agente público, tendo a Corte Suprema delimitado a representação a qual incumbe a esses tribunais, distinguindo-a da representação exclusiva das advocacias públicas, agasalhada pela unicidade de representação.
Para compreender o entendimento do STF, necessário se faz, inicialmente, perquirir sobre a natureza jurídica da representação extraordinária, para, a partir disso, poder concluir se as ditas carreiras especiais, de que trata o julgado, podem ser arregimentadas por meio de concursos públicos cujos editais tenham contemplado tanto atribuições de procuratório quanto as de auditoria e instrução processual, bem como o que configura ou não à segregação de funções, e se isso abre margem para conflitos de interesses, conforme consignado na ADI 6.433-PR, cujo objeto versa sobre a legitimação judicial extraordinária no âmbito do Poder Judiciário.
Inicialmente, relevante anotar que não se trata de entendimento novo, mas, sim, de reiteração de entendimento acerca da possibilidade de órgãos autônomos atuarem, em juízo, na defesa das suas competências institucionais. Trata-se de “representação judicial extraordinária”, restrita à defesa das competências institucionais do órgão ou Poder (ADIs 94-RO, 4.070-RO, 6.433-PR, 5.024-SP e 7.177-PR), dado que prerrogativa é conduto para que as competências institucionais sejam cumpridas sem qualquer embaraço.
Entendimento do STF e personalidade judiciária dos TCs
O fato é que o Supremo, em nenhuma dessas ADIs, conferiu interpretação no sentido de que essa representação pudesse ser exercida sem a necessária observância do concurso público específico e nem fora das hipóteses de defesa da autonomia, prerrogativas e independência dos órgãos autônomos, em cujo rol se inserem os Tribunais de Contas.
Como se sabe, os Tribunais de Contas têm “personalidade judiciária” — possibilidade do exercício de representação judicial extraordinária — exclusivamente nos casos em que necessitem praticar, em juízo, em nome próprio, atos processuais na defesa de sua autonomia, prerrogativas e independência, muito embora essas instituições controladoras sejam, em regra, representadas, em juízo, pelas procuradorias dos entes aos quais se vinculam.
Diz-se “em regra” porque, se a representação em juízo tiver como objeto ato praticado por agente controlador no exercício da função administrativa, incumbirá à advocacia pública a defesa desse ato. A exceção à regra ocorre quando os atos administrativos a serem defendidos cuidarem de matéria pertinente à autonomia e prerrogativas funcionais, daí por que o artigo 18 da Lei do Mandado de Segurança, por exemplo, deve ser lido em cotejo com a unidade de representação judicial, por força do artigo 132 da CRFB/88, não sendo cabível a interposição de recursos aos tribunais superiores por autoridades coatoras que integrem órgãos autônomos e cujo ato coator esteja ligado ao exercício da função administrativa.
Spacca
Hipótese diversa ocorre quando se trata de ato praticado no exercício da função de controle, no âmbito dos processos de controle externo, portanto, restando clara a delimitação da representação judicial extraordinária dos Tribunais de Contas, resultando-se necessário concluir que a representação judicial extraordinária se reveste de natureza finalística de controle externo, dada a finalidade do seu exercício, que é vocacionada à defesa das competências/prerrogativas institucionais.
Exercício da representação
Definida a natureza da legitimidade judicial extraordinária, importa-nos saber se há óbice a que o exercício dessa representação se dê por agente público que tenha sido arregimentado por meio de concurso público de provas e títulos e que tenha exigido a formação jurídica como requisito mínimo de investidura, com previsão de lotação nesses órgãos jurídicos, ainda que as atribuições previstas no edital do concurso tenham contemplado, conjuntamente, a defesa das competências dos Tribunais de Contas, de natureza jurídica, e o desempenho de atribuições atreladas às competências ordinárias elencadas no artigo 71 da CRFB/88.
Sobre isso, que versa sobre o aspecto subjetivo da tese de julgamento, necessário esclarecer pontos relevantes: a) o julgado não afastou essa possibilidade; b) o julgado não equiparou as carreiras especiais incumbidas da representação extraordinária (e residual) de órgãos autônomos à carreira da advocacia pública. c) o julgado enuncia que o agente tenha sido investido por concurso público para cargo que abranja atribuições de natureza jurídica de advogado, procurador ou consultor jurídico, exemplificativamente (atividades de consultoria, assessoria ou direção jurídicas – artigo 1º, II da Lei nº 8.906, de 1994 — EOAB), sem prejuízo de outras atribuições igualmente finalísticas detidas pelo cargo, sendo vedado o aproveitamento de servidores que não tenham prestado concurso público para o desempenho dessas atribuições [1].
Não se pode olvidar que a administração pública, quando realiza concurso público especificamente para uma área, preestabelecendo, inclusive, lotação específica, quer arregimentar pessoal qualificadamente apto ao exercício de competências institucionais, dado que o concurso público não é apenas meio de concretizar a impessoalidade, mas de atingir a eficiência na prestação dos serviços públicos, daí por que concursos públicos realizados por Tribunais de Contas, ao destinarem vagas específicas para os aludidos órgãos jurídicos que integram as suas estruturas organizacionais, exemplificativamente, buscaram concretizar o binômio constitucional: impessoalidade e eficiência.
Aliás, a exigência de concurso público para o exercício dessas atividades se encontra contemplada nos acórdãos extraídos das ADIs que enfrentaram a temática e que foram citadas, inclusive, pela Associação Nacional dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), que ingressou na ADI 7.477-SC, na condição de amicus curiae, invocando exatamente as ADIs 4.070-RO e 5.024-SP, como sendo parâmetros jurisprudenciais que sustentam a criação das procuradorias jurídicas no âmbito dos Tribunais de Contas.
Na ADI 4.070-RO, a lei questionada – Lei nº 399, de 2007 – é expressa ao dispor que os procuradores devem ser nomeados a partir de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos.
Na ADI 5.024/SP, o STF reconheceu ser constitucional a possibilidade de criação, em quadro próprio de servidores do Poder Judiciário, de cargos de advogado público (Lei nº 14.783/2012).
Na ADI 94/RO, o STF, a despeito de reconhecer a possibilidade da representação judicial extraordinária, declarou inconstitucionais o artigo 254 das Disposições Gerais e o artigo 10 das Disposições Transitórias da Constituição do Estado de Rondônia, que possibilitavam o aproveitamento de servidores públicos sem a necessária observância do concurso público específico, reconhecendo, nesse bojo, a inconstitucionalidade de indicação de advogados pela OAB/RO.
Para além disso, sendo o exercício da legitimidade judicial extraordinária competência finalística de controle externo, dado que não atrelado à função administrativa, necessária se faz, também, a aderência ao entendimento fixado na ADI 6.655-SE [2], que reconheceu a impossibilidade de servidores comissionados desempenharem atribuições de natureza finalística.
Vedação
A decisão unânime do STF, para além de consignar que as leis de regência do Tribunal de Contas da União determinam que as atividades finalísticas de controle externo de direção são funções de confiança, o que pressupõe extensão de atribuições de cargo de provimento efetivo, reafirmou que “as competências constitucionais dos Tribunais de Contas são exercidas por servidores efetivos, a depender da natureza e complexidade e requisitos de ingresso”.
Assim, o exercício da representação judicial extraordinária, por estar diretamente atrelado às competências finalísticas de controle externo, não pode ser concretizado por servidores públicos nomeados em cargos de livre provimento em comissão ou que prestaram concurso público que tenha exigido o nível médio de escolaridade como requisito de investidura [3], ainda que inscritos na OAB, por exemplo, hipóteses que não se revelam aderentes ao entendimento consolidado nas ADIs 94-RO, 4.070-RO, 5.024-SP e, agora, à ADI 7177-PR. A propósito, o exercício da própria legitimação judicial ordinária, pelas procuradorias dos entes aos quais os Tribunais de Contas estão vinculados, é exercido por procuradores que prestaram concurso público.
Esse entendimento parte do pressuposto lógico-constitucional de que uma previsão legal de mera designação não pode prescindir da necessária análise de requisitos de investidura, de similitude de atribuições e atributos do cargo, resultando-se imperioso concluir que atribuições de complexidade intermediária e cargos de apoio/auxílio, selecionados a partir de concurso que exigiu o nível médio, bem como os ocupantes de cargos comissionados, não podem “ganhar”, por mera designação, atribuições incompatíveis com seus cargos.
Questionamento
Restando inequívoco que os agentes públicos legitimados para o exercício da consultoria interna e representação judicial extraordinária são aqueles que prestaram concurso para o desempenho de atribuições de natureza jurídica dos Tribunais de Contas, o questionamento que se faz é se esses agentes podem desempenhar, simultaneamente, atribuições ligadas à representação judicial extraordinária e atribuições de auditoria e instrução processual, no âmbito dos processos de controle externo.
Sobre esse ponto, como reforço argumentativo para afastar a “possibilidade de mera designação” de qualquer servidor do quadro do tribunal, o relator do voto vencedor invoca a ADI 6.433-PR, que versa sobre a legitimidade judicial extraordinária no âmbito do TJ-PR [4]. Tanto nesse julgado quanto na ADI 5.024-SP, entendeu o STF que o servidor que estiver no exercício da representação não pode, simultaneamente, encontrar-se no exercício das atividades jurisdicionais.
Ocorre que o fundamento decisório para afastar os consultores jurídicos do TJ-PR que atuam no assessoramento da atividade jurisdicional do exercício da representação judicial extraordinária foi pautado pela necessidade de apartar a função jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário do exercício da advocacia, tendo sido utilizado, como reforço argumentativo, o princípio da moralidade, vedação ao conflito de interesses, e, ainda, a incompatibilidade com o exercício da advocacia, de que trata o inciso IV do artigo 28 do Estatuto da OAB.
No caso dos Tribunais de Contas, a despeito da disposição normativa do artigo 73 da CRFB/88, cujo texto normativo remete ao espelhamento contemplado no artigo 96 — que dispõe sobre a organização do Poder Judiciário — a processualização das competências institucionais, por essas instituições controladoras, concretiza-se no âmbito da esfera controladora, e não da esfera judicial, por óbvio.
Em vista disso, não se encontram presentes, portanto, os riscos e vedações apresentados no julgado como fatores impeditivos ao exercício da representação judicial por quem atue no ordinário exercício das atividades jurisdicionais de controle externo. Noutro dizer, o processo em que atuam os agentes que exercem o procuratório extraordinário dos Tribunais de Contas se desenvolve no Poder Judiciário (processo judicial), e não nos Tribunais de Contas com os quais esses agentes mantêm vínculos funcionais (processo de controle externo).
Afora isso, os agentes a quem cabe o exercício dessa representação judicial dos Tribunais de Contas não estão enquadrados na regra da incompatibilidade com o exercício da advocacia, de que trata o artigo 28 do Estatuto da OAB, à luz do entendimento fixado pelo CFOAB.
Conclusão
Disso resulta necessário concluir não haver vedação a que o agente público com atribuições de auditoria e instrução processual e que tenha prestado concurso público nos moldes anteriormente tratados possa exercer a legitimidade judicial extraordinária do tribunal, notadamente porque esse exercício se desenvolve no âmbito do Poder Judiciário, e não no âmbito dos Tribunais de Contas, instituições com as quais esses agentes mantêm vínculos funcionais, não havendo, portanto, riscos de ingerências ou de conflitos de interesses.
Contudo, não se pode olvidar que a rota de incidência de sindicabilidade dos processos de controle externo, pelo Poder Judiciário, alcança não apenas o respeito à ampla defesa e o contraditório, mas, também, o devido processo legal, formal e material, daí por que ser necessária adoção de medidas com vistas a mitigar riscos de ocultação de erros e em aderência, ainda, à tutela do bom e regular funcionamento dos Tribunais de Contas.
Uma dessas medidas constitui em estabelecer regras de governança para que o agente público que tiver atuado na instrução do processo que deu ensejo à decisão de controle externo, porventura objeto de ação judicial, não atue na representação judicial extraordinária em defesa dessa decisão, em respeito ao princípio da segregação de funções.
[1] Em síntese, o efetivo funcionamento do órgão criado depende: (1) de lei que crie ou transforme cargos no âmbito do Tribunal de Contas; (2) da realização de concurso público para preenchê-los, vedada a transposição de servidores por designação da Presidência; (3) de previsão específica em lei de atribuição do cargo para atuar na consultoria ou assessoramento da Corte e, apenas quando discutida sua autonomia ou suas prerrogativas, na sua representação judicial.
É o caso, por exemplo, dos Tribunais de Contas dos Estados de Sergipe e do Rio Grande do Norte, por exemplo, que realizaram concurso público para arregimentar pessoal para o desempenho dessas competências institucionais de natureza jurídica. No âmbito do TCE-SE, disciplinadas, originariamente, na Res. TCE-SE n. 241, de 2007, alterada pela Res. TCE-SE n. 248, de 2007, e, na Lei Complementar Estadual n. 204, de 2011, alterada pela LCE n. 371, de 2022. No TCE-RN, essas competências de natureza jurídica estão regulamentadas na Res. n. 09/2015, alterada pela Res. n. 02/2018.
[2] Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal reafirmou, por unanimidade, a impossibilidade de qualquer interpretação ou alteração de parâmetro normativo que passe a prever “recrutamento amplo” para cargos cujas atribuições estejam ligadas às competências finalísticas de controle externo.
[3] “Como os servidores designados para o exercício dessas funções são titulares de cargos de provimento efetivo, o caso não se insere em qualquer exceção à exigência constitucional de realização de concurso público (art. 37, II, da CF/1988). Consequentemente, não é juridicamente adequada a autorização para simples aproveitamento de servidores para a função de assessoramento e representação judicial do TCE. Isso porque essas são atribuições diversas daquelas acometidas aos cargos de que são titulares.” (Excerto do voto do min. Luís Roberto Barroso, na ADI 7.177-PR).
[4] 18. Apesar de não se tratar aqui do Poder Judiciário, mas do Tribunal de Contas, o precedente anterior do Estado do Paraná demonstra a importância de se apartar a assessoria jurídica e a representação judicial das demais atividades exercidas pelo órgão. Por essa razão, não se mostra adequado aqui o aproveitamento do “Analista de Controle da Área Jurídica”, defendido pelo TCE-PR (fl. 18, doc. 23). Assim, faz-se necessário atribuir ao dispositivo impugnado interpretação conforme à Constituição, para se afastar a possibilidade de mera designação de servidores do quadro da Corte.